Quem passar a pé pela Rua Sargento Silvino Macedo, em Boa Viagem, Zona Sul do Recife, não conseguirá caminhar por determinado trecho da calçada da via. Nela, dezenas de barracas estão montadas, desde a última sexta-feira (12), isolando através de cones o logradouro público e o direito de ir e vir de pedestres. Não se trata de uma ocupação; as pessoas que ali pernoitam estão numa fila.
Na próxima segunda-feira (22), o Ministério de Comunicações realizará um mutirão para atualização de outorgas de retransmissoras de TV secundárias. A ação tem como objetivo regularizar emissoras que atuam sem autorização, além de resolver pendências documentais e também dar a oportunidade a pessoas interessadas em prestar o serviço de retransmissão. Para os estados de Pernambuco, Paraíba, Alagoas e Sergipe, o mutirão será realizado de 22 a 24 de setembro, na sede da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) no Recife, localizada na citada Rua Sargento Silvino Macedo. As pessoas que acampam na calçada da Anatel explicaram o motivo: foram contratados por um grupo de telecomunicações para, literalmente, “guardarem lugar na fila”.
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São quase 50 pessoas acampadas no local. Apesar de realizado durante três dias, as senhas só serão distribuídas na segunda-feira (22). De acordo com uma integrante do grupo (que pediu para não ser identificada), o objetivo é pegar as primeiras senhas entregues pela Anatel e repassá-las para as empresas “contratantes”. Porém, ninguém confirma que grupo de telecomunicações está por trás da ação. Um dos representantes do grupo, Jean Carlos explicou que toda a infraestrutura necessária está sendo disponibilizada aos “acampados”.
“Temos um apartamento de apoio para que as pessoas possam ir tomar banho, fazer as necessidades. Não tivemos problema com a Anatel; só pediram para não ficarmos em frente ao acesso do prédio. Vai ser muita gente aqui na segunda-feira, de vários estados”, explicou Jean Carlos, que se limitou apenas a afirmar ter sido contratado através da assessoria do grupo (também não revelada). Questionada sobre a ação, a assessoria da Anatel, em Brasília, deixou claro ter conhecimento sobre o caso.
“O período marcado pelo Ministério das Comunicações é de 22 a 24 de setembro e não há fornecimento prévio de fichas. Os interessados nessas outorgas estão pagando senhoras para ficar marcando lugar. O acampamento foi iniciado na última sexta e foi acertado que eles não ocupem o estacionamento externo da Anatel”, diz a nota enviada pela Agência.
Ocupação é irregular, diz a Prefeitura
A reportagem do Portal LeiaJá entrou em contato com a Secretaria de Controle Urbano do Recife (Secon) para questionar sobre o uso do espaço público. Em seguida, a Secon encaminhou uma equipe ao local e garantiu que irá notificar oficialmente os ocupantes.
“Depois que a notificação for entregue, a área deve ser desobstruída em 24h; caso contrário, as barracas serão apreendidas pela Secon”, afirmou o órgão através de nota oficial, no final da tarde desta terça (16). Porém, na manhã desta quarta-feira (17), as barracas permanecem no local. Funcionários da Anatel afirmaram que a Polícia chegou a fazer uma ronda, durante a madrugada, o que incomodou as pessoas que estão no acampamento improvisado.
Compra de “lugar na fila” e a busca pelas concessões de comunicação
Para a advogada e professora de Direito da Universidade Federal de Pernambuco, Larissa Leal, a prática de contratar pessoas para garantir lugar na fila é ilícita, apesar de não ser considerado crime. “É uma prática ilícita porque tem por objetivo burlar um procedimento fundamental no processo de concessões, que é a audiência pública. O fato é que fazem isso para evitar que a população seja ouvida, bem como os grupos de pressão social”.
O jornalista Ivan Moraes Filho, coordenador do comitê do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) em Pernambuco, lembra que as audiências públicas são uma luta para quem exige transparência no processo das concessões, mas não são obrigatórias. “Infelizmente, nem nos processos de recebimentos de concessões, nem nas renovações, não são obrigatórias as audiências públicas. Os artigos na Constituição Federal que tratam sobre isso (do artigo 220 ao 224) não estão regulamentados”, esclareceu o jornalista.
No edital publicado pelo Ministério das Comunicações, um trecho explica que, no caso de apresentação de mais de um requerimento para uma mesma localidade, terá prioridade a “ordem cronológica” dos requerimentos protocolados na Anatel. Ivan Moraes questiona a importância dada a quem chegar primeiro. “É no mínimo estranho que as concessões possam ser entregues por ‘ordem de chegada’ sem que haja uma análise mais aprofundada do uso que terão, por exemplo”.
A advogada Larissa Leal acredita que o processo, do modo como é realizado, favorece a alguns poucos e priva a sociedade do seu direito à comunicação. “Perverteram o sistema a tal modo que temos defendido que essas audiências públicas seriam mais eficientes com ouvida aberta por 15 ou 30 dias, como a própria Anatel já fez no caso de telefonia. Assim, teriam condições de voz e ouvida todos que chegassem e não os primeiros da fila”.
O LeiaJá também procurou o Ministério Público Federal (MPF), através da Procuradoria da República em Pernambuco. Segundo o órgão, não há nenhuma ação em curso para investigar uma suposta ilegalidade no caso porque "não foi feita nenhuma denúncia".