A sala de espera tem poltronas com o estofado rasgados e danificados, gases e pedaços de cordas amarrados nas cadeiras e jogados pelo chão, acompanhantes e alguns pacientes circulam pelo local, outros permanecem sentados. Tarde de quinta-feira, 30 de novembro, e uma enfermeira palestrante alerta que vai iniciar uma apresentação sobre o “Protocolo de Contenção Mecânica”. A cena acontece na Emergência Clínica do Hospital Ulysses Pernambucano, mais conhecido como Tamarineira. “Eu sei da situação que vocês passam aqui e não vim julgar ninguém. Pelo contrário, estou aqui para ajudar e mostrar como todos devem agir em situações de crise dos pacientes”, disse a mulher, apresentada à equipe da instituição como Vanessa.
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A reportagem do LeiaJá estava dentro da sala de emergência e acompanhou toda ‘oficina’ ministrada aos seguranças da instituição, técnicos de enfermagem, enfermeiros, recepcionistas e outros. Em vários momentos da palestra, os profissionais da Tamarineira pareciam despreparados para trabalhar na única emergência psiquiátrica do Estado. “Moça, muitas vezes temos que amarrar eles porque não temos equipamentos para garantir a nossa segurança. Aí eles não gostam e nos batem. Temos que bater também pra nos defender. É uma realidade muito diferente da teoria”, afirmou um dos técnicos de enfermagem da instituição.
A palestrante tenta contornar a situação e diz que muitas vezes os pacientes com transtornos mentais entram em crise porque ninguém gosta de ser amarrado por muito tempo. “Imagina, eles viajam do interior pra cidade amarrados nos ônibus e os próprios familiares não entendem a situação”, explica a profissional. Mas, os funcionários parecem não ceder ao procedimento repassado. “São poucos técnicos de enfermagem, não temos espaço suficiente porque a emergência é pequena e o paciente vai se machucar. Vamos deixar ele bater na gente, é?”, indaga outro funcionário, ressaltando que a técnica dela não funciona na Tamarineira.
A situação causa espanto em muitos aspectos. A palestra ser ministrada na sala de emergência da instituição de forma pouco cuidadosa, a constante resistência de quase todos funcionários do hospital em aceitar o procedimento passado pela enfermeira. O despreparo e a falta de um procedimento e capacitação também chamam atenção. Parece que os dois lados, tanto os pacientes como os funcionários estão insatisfeitos com o serviço oferecido pela gestão estadual e o clima hostil é mascarado.
Durante a palestra, um paciente surpreende a todos ao sair do corredor interno que dá acesso à sala de emergência. Ele, visivelmente irritado, diz querer ir embora. O homem tira a sua camisa e mostra as marcas no corpo. “Estão vendo? É isso que eles fazem comigo aqui, não aguento mais”, crava. Entre chutes na porta de saída e falas agressivas, ele consegue ser contido após uma funcionária pedir com calma para ele ir até o consultório da assistente social.
“Olha aí, doutora. Utiliza sua técnica agora com ele. É enorme e precisava ser contido”, diz ironicamente um dos profissionais. A enfermeira volta a dizer que entende que ninguém quer apanhar quando sai de casa para ir ao trabalho, mas reforça a importância de se seguir um protocolo para imobilizar qualquer paciente em situação de emergência. Mais uma tentativa falha. O LeiaJá registrou anonimamente alguns trechos da palestra em vídeos.
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Pernambuco abrigou por décadas o maior manicômio do Brasil, o Hospital Psiquiátrico Alberto Maia. Na época, denúncias relatavam que os mais de 600 pacientes viviam em condições precárias, sem comida, roupas ou condições de higiene. A unidade de saúde chegou a registrar uma média de quatro óbitos por mês em seu serviço. A instituição foi fechada no dia 30 de dezembro de 2010.
A falta de condições estruturais de hospitais psiquiátricos e os constantes maus tratos a pacientes com algum tipo de transtorno mental chamados comumente de “doidos” ou “aberrações” sempre foi algo comum na história da saúde mental do Brasil. Uma das primeiras tentativas oficiais de mudar o cenário do país foi no fim de década de 1970, quando movimentos ligados à saúde denunciaram abusos cometidos em instituições psiquiátricas, e precarização das condições de trabalho.
Com o intuito de acabar com os manicômios, grupos favoráveis à políticas antimanicomiais visavam substituir, aos poucos, o tratamento dado até então por serviços comunitários. Intitulado de Luta Antimanicomial, o projeto serviria de base para o paciente ser encorajado a ter mais participação cidadã, fortalecer os vínculos familiares e sociais, e nunca sendo isolado destes.
Nesse cenário, há exatamente 30 anos, em dezembro de 1987, 350 profissionais da área de saúde assinavam a Carta de Bauru, reivindicando mudanças na política manicomial do Brasil e por mais garantia de direitos básicos aos pacientes. O documento serviu de referência para pessoas ligadas ao sistema dos hospitais psiquiátricos do país.
“O manicômio é expressão de uma estrutura, presente nos diversos mecanismos de opressão desse tipo de sociedade. A opressão nas fábricas, nas instituições de adolescentes, nos cárceres, a discriminação contra negros, homossexuais, índios, mulheres. Lutar pelos direitos de cidadania dos doentes mentais significa incorporar-se à luta de todos os trabalhadores por seus direitos mínimos à saúde, justiça e melhores condições de vida”, diz um trecho da Carta de Bauru. Leia aqui a íntegra do documento.
Hospital Colônia de Barbacena exterminou 60 mil pessoas. (Imagens: Geração Editorial/divulgação)
De acordo com Paulo Aguiar, psicólogo e integrante do Conselho Federal de Psicologia, a reforma psiquiátrica teve início nos anos 1980 e ainda hoje não foi completamente implementada. “A Luta Antimanicomial vem de um processo de transformação na forma de enxergar e tratar a loucura. O que foi proporcionado para essas pessoas que funcionavam de uma forma diferente e tinham alguma dificuldade em se adaptar e se adequar ao que havia de norma vigente não condizia com os direitos humanos. A lógica era afastar essas pessoas do convívio social porque se acreditava que elas não tinham condições de socializar porque fugiam a qualquer forma de adequação social”, explicou o pesquisador.
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Para Halina Cavalcanti, do Levante Popular da Juventude, os leitos dos hospitais psiquiátricos devem deixar de existir porque ferem os Direitos Humanos e excluem os pacientes da sociedade. "Temos uma ideia de manicômio que parece não existir, mas Pernambuco ainda conserva muitos leitos psiquiátricos de enclausuramento e de tortura. Não temos como humanizar esses locais", acrescentou.
Atualmente, em Pernambuco, há cinco hospitais psiquiátricos. O Ulysses Pernambucano (120 leitos), a Comunidade Terapêutica Olinda (CTO - 130 leitos - privado com convênio junto ao SUS), a Clínica Psiquiátrica São Vicente, em Serra Talhada (120 leitos - privado com convênio junto ao SUS), totalizando 370 leitos de internação. Há, ainda, duas instituições com pacientes de longa permanência, o Vicente Gomes de Matos, em Barreiros (96 pacientes) e Alcides Codeceira, Igarassu, (82 pacientes).
Além das instituições, existem 251 leitos de saúde mental em hospitais gerais espalhados por todo o Estado, que recebem casos de emergência. De acordo com a Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco, nos últimos nove anos, foram fechados 11 hospitais e 1.982 leitos de longa permanência em hospitais psiquiátricos.
A ideia é substituir por completo os hospitais psiquiátricos por redes de assistência mais estruturadas e regionalizadas. Em 1992, uma portaria ministerial institucionaliza os Núcleos e Centros de Atenção Psicossocial (os NAPS e CAPS). São unidades locais que oferecem “cuidados intermediários entre o regime ambulatorial e a internação hospitalar (...) por equipe multiprofissional”. Sai de cena uma forma mais conservadora de tratar quem sofre de algum transtorno psiquiátrico no Brasil e o paciente agora é inserido em um modelo da reforma psiquiátrica.
O grande impasse é que essas redes de assistência local não dão conta da alta demanda de pacientes e a estrutura de muitas deixa a desejar. É o que diz a técnica de enfermagem Gilvanete Maria Lima, cuidadora e integrante de reuniões familiares nos Centros de Atenção Psicossocial do Recife. “As pessoas que não conseguem acessar nem um serviço nem o outro estão nas ruas ou nas drogas. Nos CAPs não há medicação completa para todo mundo e nem todo funcionam 24 horas. É algo bonito no papel, mas na prática, só as famílias sabem o que passam”, conta.
Para ela, o manicômio é um submundo, mas falta investimento em alternativas viáveis. “Tem que ter estrutura e profissionais para receber essas pessoas necessitadas de um cuidado humanizado. Eu vejo que se nada for feito, em menos de dez anos, as famílias dos usuários também vão virar pacientes porque não conseguem dar conta e nem cuidar de seus próprios familiares”, relata a técnica de enfermagem.
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Em 2011, o relatório “Saúde Mental em Dados”, publicado pelo Ministério da Saúde, divulgou que, entre os anos de 2003 e 2010, um total de 18 mil leitos psiquiátricos de baixa qualidade assistencial foram fechados. O relatório também mostra que o número de CAPs no território brasileiro cresceu.
Em Pernambuco, os CAPs totalizam são 134 unidades, sendo 17 com funcionamento 24 horas e 11 com foco no acolhimento do público infanto-juvenil. De acordo com a Secretaria Estadual de Saúde, os Centros são formados por equipes multiprofissionais e transdisciplinares, realizando atendimento a usuários com transtornos mentais graves e persistentes, a pessoas com sofrimento e/ou transtornos mentais em geral e àqueles em uso abusivo ou dependência de crack, álcool ou outras drogas. Todos os CAPs são geridos pelos municípios.
Sobre a reunião presenciada pelo LeiaJá na emergência do Hospital Ulysses Pernambucano, a SES informou que a unidade não compactua com qualquer ato de violência e toda denúncia desse tipo deve ser comunicada a própria direção da unidade ou à Ouvidoria do Estado (0800.286.2828), informando data do ocorrido e, se possível, informações sobre o funcionário, para que seja feita a apuração e tomadas as devidas providências. “A direção ainda ressalta que instrui, constantemente, suas equipes sobre as medidas de contenção para os pacientes em surtos psiquiátricos, visando garantir a integridade do paciente e dos profissionais em atendimento”.
Em entrevista ao LeiaJá, o gerente de Atenção à Saúde Mental da Secretaria Estadual de Saúde (SES), João Marcelo Ferreira, informou que desconhece a realização da na emergência da Tamarineira. “Não posso opinar sobre isso porque eu não estava lá. Mas, em casos mais graves elas podem ser utilizadas, não de uma forma aleatória.
Sobre a forma como a equipe alegou agir em certas situações, o gestor complementa que a equipe da unidade psiquiátrica trabalha seguindo vários protocolos clínicos, dentro de uma perspectiva mais humanitária. “O estado tem compromisso com a política nacional de saúde mental. Estamos querendo fechar o hospital de Barreiros, mas é algo paulatino que viemos conduzindo junto ao Ministério da Saúde para ter um maior cuidado para que a substituição se efetive”, concluiu.