Elas botaram a mão na massa, passaram por cima de barreiras sociais históricas e conquistaram a tão sonhada casa própria. Há 24 anos, um grupo de 78 mulheres atuou em regime de mutirão durante o ano de 1994 para a edificação de casas que seriam posteriormente habitadas por elas e suas famílias. O resultado de todo esforço e união feminina foi o surgimento da Vila das Mulheres Pedreiras, comunidade localizada no bairro de Peixinhos, em Olinda, Região Metropolitana do Recife.
Em um ambiente predominantemente masculino, pedreiras, ferreiras, pintoras, azulejistas, ceramistas e eletricistas ganharam espaço. Profissões tradicionalmente ocupadas e coordenadas por homens também são serviços de mulheres. Em 1992, o Projeto Mulher Constrói, em que mulheres seriam as responsáveis por construir suas próprias casas enquanto os maridos tomavam conta dos filhos, foi criado pela Federação das Mulheres Pernambucanas (FMP), em convênio com a Companhia de Habitação Popular de Pernambuco (Cohab), atual Cehab. Para dar seguimento à iniciativa foram realizados cursos de construção civil direcionados à mulher.
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Na época em que conheceu o projeto, Márcia Durack, 55, trabalhava como vendedora de perfume e morava com o marido e oito filhos em uma casa com dois vãos, em Água Fria, Olinda. Ela lembra que de todos os seus sonhos, ter uma casa era o principal por causa das inúmeras humilhações sofridas. A notícia mais feliz de sua vida chegou aos seus ouvidos no dia 8 de março de 1994. No Dia Internacional da Mulher, a Cehab realizou o sorteio das mulheres que receberiam a oportunidade de trabalhar no projeto. Entre as 200 inscritas, foram contempladas 78. A prioridade era beneficiar mães e chefes de família que viviam em áreas de risco.
Pioneira e promissora, Márcia adquiriu conhecimento na área de construção e se tornou ferreira e tratorista. Uma das primeiras da vila onde homens praticamente não tinham espaço. Durante a obra, ela era responsável por coordenar uma equipe com 16 ferreiras. ”Muitas nem acreditavam que o projeto sairia do papel porque era algo tão distante ter um lar só nosso. Mulheres, dos mais variados bairros lutaram. Essa unidade e luta fez com que a gente chegasse até aqui. A nossa visão é o que nos uniu”, contou a ferreira.
A ferreira Márcia Durack mostra a fotografia de quando era tratorista na obra que levantou sua própria casa. (Foto: Chico Peixoto/LeiaJáImagens)
O governo de Pernambuco cedeu o terreno, que precisou ser aterrado porque era mangue. Após a primeira etapa, as casas seriam construídas e cada uma teria 44m², com seis cômodos. A área total era de 2,2 hectares. “Quando começou o processo de vim ver o campo, as mulheres vinham de caminhão, na expectativa do que seria essa casa. O sindicato enviou o ferreiro seu Cláudio. Na época, o governador Joaquim Francisco, um homem culto, acreditou no nosso potencial. Ele liberou materiais e os homens profissionais para nos ensinar. Eles nos ensinaram como era o procedimento prático. As mulheres eram mais assíduas, elas não se atrasavam, participavam de tudo. Os homens nem sempre vinham ensinar”, relembrou Márcia.
Tijolo por tijolo, ferragem cortada e devidamente colocada na base, piso feito e aos poucos as casas da Vila das Pedreiras iam surgindo. Mas, como elas dependiam do material enviado pelo gestão estadual, as dificuldades foram muitas porque o material de construção sempre acabava ou era alvo de roubo. E as casas ficavam mais distantes. “Fomos várias vezes à Cohab buscar material porque o projeto estava parado e tinham mulheres desesperadas sem ter onde dormir”, disse.
Além das dificuldades com os materiais, as mulheres pedreiras também não eram aceitas pelos seus maridos e por homens que caçoavam delas porque, para eles, não sabiam nem segurar uma pá e cavar uma base. “Meu marido não acreditava em mim, dizia que eu estava botando chifre nele. Quando me viu no jornal, tomou consciência do que eu estava fazendo isso pela família. Eu sofri muito com isso”, relembrou Márcia.
À época, para a presidenta da Federação de Mulheres de Pernambuco, Edna Costa, a vila representava uma conquista para quem não tinha emprego e ainda vivia de aluguel ou nas ruas. Para Márcia, o que foi feito na Vila das Pedreiras deveria se repetir em outros regiões. “A gente é um pedacinho geográfico que fez um diferencial tão grande. Eu trabalhei como tratorista, também. Eu via os homens mexendo no trator e eu também queria fazer aquilo, achava legal e sabia que tinha potencial. Certo dia, um deles me deixou subir para fazer o transporte do material. Nos primeiros dias derrubei uma das guaritas, mas depois aprendi corretamente”.
No dia 31 de dezembro de 1994, o sonho da ferreira de Peixinhos se tornou realidade. Ela finalmente se mudou para sua casa, onde vive até hoje com a família. "Foi um sonho quando a gente entrou. Ainda lembro da primeira noite que passei aqui. Apesar de simples, eu sabia que era minha e que nunca mais seria humilhada". Em 2018, Márcia relembra os anos de luta e muito trabalho duro, de domingo a domingo para erguer seu teto. Talentosa e uma líder com qualidades ímpares, a ferreira não seguiu carreira após a construção de sua casa.
O preconceito por ocupar uma profissão “de homem” prejudicou a continuidade no ramo da construção civil. “Eu queria continuar como tratorista, mas nunca tive oportunidade. Minha filha seguiu meus passos e é assentadora de cerâmica e hoje em dia o problema continua o mesmo. Ela é muito boa, tem experiência, mas esbarra no mesmo rótulo de ser frágil”, disse. Hoje, ela trabalha como vendedora e se orgulha dos filhos. Segundo dados da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade), de 2008 até 2016, o número de mulheres cresceu de 22 mil para 30 mil no ramo da construção civil, mas ainda representam apenas 0,7% do total quando comparados ao número de homens no setor.
Marinalva queria ter seguido a profissão no ramo da construção civil, mas desistiu depois da falta de oportunidades na área por ser mulher (Foto: Chico Peixoto/LeiaJáImagens)
Marinalva Oliveira da Silva, 52, natural de Alagoas, precisou vir morar no Recife junto com sua filha por questões pessoais do marido. Após alguns anos na cidade, tiveram mais três crianças e pouco tempo depois, ele a abandonou. Ela foi morar embaixo do Viaduto Tancredo Neves, na Zona Sul da capital pernambucana, e conseguiu um emprego de auxiliar nos serviços gerais do Sindicato da Indústria da Construção Civil no Estado de Pernambuco (Sinduscon).
“Na época, Ducilene era a presidente do sindicato da construção civil e me prometeu uma casa. De primeiro, ela me levou para morar dentro do sindicato para eu sair da rua com meus filhos. Depois, me informou que eu podia participar do projeto e ganhar uma casa”, contou Marinalva.
Na década de 1990, a auxiliar de serviços gerais teve o primeiro contato com o canteiro de obras. Também foi uma das sorteadas no Projeto Mulher Constrói. Trabalhava como ajudante de pedreiro e na alvenaria assentando os tijolos. “Eu tinha muita dificuldade, eram quatro crianças para alimentar, sem ter condições de pagar aluguel de uma casa. A escolha era comer ou morar em um lar”.
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A Vila das Pedreiras foi reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1996, como um dos modelos de solução para o déficit habitacional do mundo. Cada rua da vila recebe o nome das principais mulheres em homenagem à luta delas na redução do déficit habitacional de Pernambuco. A Rua Tereza Sabino é uma das mais importantes. Ela foi uma das mais ativas na luta pelo direito à moradia. Márcia revela uma das explicações sobre como o projeto nasceu. “No Alto do Mandú, Tereza se reuniu com outras mulheres e invadiu um terreno, mas a polícia foi cruel. Talvez as pessoas digam que invadir a terra dos outros não é justo, mas pra quem não tem como pagar um aluguel e precisa alimentar o filho, essa é a escolha. Por causa dessas ações, a Federação da Mulher Pernambucana criou o projeto”, explicou.
Juntas, as mulheres fundaram a Associação de Mulheres da Vila das Mulheres Pedreiras no intuito de oferecer cursos, palestras e outras atividades a outras mulheres da comunidade. O local, no entanto, está fechado por causa da falta de verba. A atual presidente da associação, Cristiane Gomes, diz que os problemas estruturais impedem o funcionamento da casa, também levantada pelas mulheres da vila.
Cristiane, Marinalva e Márcia seguem na espera do título de posse de todas as casas da Vila das Pedreiras (Foto: Chico Peixoto/LeiaJáImagens)
Atualmente, a comunidade conta com 138 casas. Dessas, 78 são das mulheres que trabalharam na obra em 1994. As outras 60 casas pertencem a homens pedreiros. Na época, também estavam em construção as residências dos pedreiros sem teto, cujo regime se equiparava ao das mulheres pedreiras.
O déficit habitacional brasileiro atingiu a marca de 7,7 milhões de domicílios, o terceiro pior índice da história, segundo um estudo realizado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) divulgado em 2017. Na Região Metropolitana do Recife, o déficit é de 108 mil unidades. Só na capital pernambucana são 280 mil pessoas sofrendo com a falta de moradias adequadas. Os dados foram divulgados pela ONG Habitat para a Humanidade Brasil.
Após 24 anos, este Dia das Mulheres não deve ser celebrado. Apesar de todo reconhecimento e notoriedade das mulheres da Vila das Pedreiras, o título de posse das casas nunca chegou a mão de nenhuma delas. É como se elas não fossem as verdadeiras donas dos imóveis que construíram com suor, dedicação e luta. Há anos, as líderes comunitárias lutam para que a Companhia Estadual de Habitação (Cehab) entregue os devidos papéis.
Procurada pela reportagem do LeiaJá, a Cehab informou que os títulos de posse das casas localizadas na Vila das Pedreiras encontram-se em ajustes finais com os órgãos competentes e serão entregues até o final do primeiro semestre de 2018. “Além disso, a Cehab realizará toda a urbanização da área. A construção incluirá rede de esgoto, pavimentação e drenagem. Esse projeto está em processo licitatório e a previsão é que as obras comecem ainda este ano”, diz trecho de nota enviada à imprensa.
Questionada se a pasta teria projetos semelhantes ao que foi realizado na década de 1990 em Peixinhos para outras áreas de Pernambuco no intuito de diminuir a falta de moradia, o órgão estadual afirmou desconhecer o projeto. “Sobre o projeto "Mulher Constrói", a Cehab informa que não tem conhecimento da iniciativa, mas que trabalha com as comunidades em prol da requalificação e reurbanização dos bairros e apoia todos os projetos de interesse da população”.
*Na época, uma cartilha foi feita para ensinar de maneira simples as principais técnicas da construção de uma casa. O documento foi dividido em parte escrita e ilustrada para orientar quem não entende de construção, a levantar a sua casa, desde a fundação (sapata) até a cumeeira. A associação só possui um exemplar e afirma ter recebido a cartilha do Governo de Pernambuco.
Confira:
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