Pernambuco é a terra do maracatu, lugar onde, séculos atrás, essa cultura foi criada pelos negros escravizados trazidos para cá. Os tambores ecoam por todos os cantos do estado e, além das centenárias nações - que detém os saberes e o legado dessa manifestação - inúmeros grupos percussivos se valem do batuque das alfaias recriando e dando novo uso a essa tradição. A força do ‘bombo’ de maracatu e o fascínio que consegue causar ultrapassou a barreira dos terreiros e ruas chegando até às igrejas evangélicas. Hoje, diversas congregações possuem grupos de percussão que fazem do batuque um instrumento de evangelização.
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É na própria Bíblia que os batuqueiros evangélicos buscam motivação e explicação para seu trabalho. “A gente tem como base o versículo primeiro a Samuel 10, a partir do versículo cinco, Samuel fala pra Saul que ele vai encontrar um grupo de profetas tocando tambores. Através disso, a gente anexou com a cultura e trouxe algo regional que a gente pode aproveitar, conectar”, explica Gilberto Portela, líder do grupo Tangedores, criado há 11 anos na Igreja Batista do Largo da Paz. O pastor Edison Ricarte Martiniano dos Santos, à frente de um outro grupo, o Ministério Rugido do Leão, da Igreja Obreiros de Cristo da Imbiribeira, ratifica: “Eu entendo que existe uma crença que eles, as culturas de matriz africana, são os criadores de ritmos e do som afro. Eles acreditam que estamos roubando sua cultura e usando sua ‘música’ de forma indevida. Cabe ao povo de Deus apresentar as verdades bíblicas acerca do uso desses instrumentos”.
A “crença” citada pelo pastor Ricarte está ligada ao tradicional uso que as religiões e manifestações musicais de matriz africana fazem dos tambores, incluindo o maracatu nação. Tal ligação oferece aos grupos evangélicos alguns obstáculos que precisam ser quebrados por eles, como a aceitação na sociedade e, até mesmo, dentro da própria igreja. “Tanto dentro da igreja quanto fora há um mix de reações, tem umas pessoas que estranham, tem uns que apoiam. O toque aparentemente é parecido (com o maracatu tradicional) mas quando você escuta a letra é diferente, então a palavra (de Jesus) querendo ou não chega”, diz Samuel Cardoso, líder da parte musical do Tangedores.
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Levar “a palavra” e evangelizar através do som dos tambores é o objetivo desses grupos. Eles se apresentam nas suas igrejas, durante os cultos, além de visitarem outras congregações, ruas e praças públicas, fazendo apresentações até mesmo no Carnaval. “O objetivo do grupo é levar o amor de Deus às pessoas e dizer que elas são livres”, diz o pastor Ricarte. “Uma coisa que a gente prioriza é a música cantada, que seja passada a palavra através da arte, através da música. Mais importante que os toques é a letra”, frisa Samuel do Tangedores.
O grupo Tangedores, da Igreja Batista do Largo da Paz tem 11 anos de história. Foto: Paula Brasileiro/LeiaJáImagens
O líder do grupo da Batista do Largo da Paz faz questão de explicar que seu grupo busca se distanciar do maracatu tradicional feito nas nações. Ele conta que o Tangedores busca mesclar ritmos, como coco e samba reggae, além de usar instrumentos não habituais do maracatu, como a zabumba, para fazer um som diferenciado. “É um grupo percussivo que a gente pode utilizar vários instrumentos e vários tipos de toque. A gente não é obrigado a fazer apenas os toques que eles fazem lá fora, a gente adequou o batuque ao louvor da igreja”.
Tradição centenária
O maracatu de baque virado, ou maracatu nação, tradição secular do estado de Pernambuco, foi tombado como Patrimônio Cultural do Brasil, em 2014, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), tamanha a sua relevância cultural. O estado conta com nações centenárias, como o Maracatu Estrela Brilhante de Igarassu, Maracatu Leão Coroado e Elefante que carregam, com o som dos seus tambores, saberes ancestrais e tradições culturais e religiosas, dada a ligação do brinquedo com a religião de matriz africana.
Para os maracatuzeiros, o batuque evangélico tem sido visto como uma violência contra eles. Adriano Carlos dos Santos, mestre do Maracatu Nação Cambinda Estrela, grupo com 84 anos de história, conta que se sentiu afrontado ao ver um batuque evangélico tocar em plena Noite dos Tambores Silenciosos - encontro de maracatus realizado na segunda-feira de Carnaval no Pátio do Terço, centro do Recife com forte simbologia religiosa: “Fiquei um pouco sem entender, mas eu vi como uma afronta. Os evangélicos, alguns, trabalham muito nessa postura de afrontar, diminuir o povo de terreiro, que faz cultura popular. Eles também, ao mesmo tempo, fazem isso para estarem em todos os espaços. Tem micareta do senhor, banda de axé, pagode, forró, tudo no segmento musical, porque como o processo é de venda também, de atingir o público, então eles querem estar em todos os segmentos”.
Mestre Adriano, do Maracatu Nação Cambinda Estrela, sediado na comunidade de Chão de Estrelas. Foto: Paula Brasileiro/LeiaJáImagens
Wanessa Paula, presidenta do Cambinda Estrela, complementa dizendo que os maracatuzeiros se sentem desrespeitados ao verem sua cultura sendo usada pelos evangélicos: “É uma total falta de respeito, você para e não entende até que ponto o uso deles de se apropriar das coisas pra poder se beneficiar e ocupar todos os espaços até onde vai. Isso é muito danoso. Nós somos os detentores dessa cultura, somos nós que sabemos da questão religiosa, da questão dos sotaques (forma de tocar), nós temos nosso próprio sotaque e não aceitamos que ele seja feito dessa forma que nos agride”.
Eles comentam já terem visto e até mesmo passado por situações de enfrentamento como serem denunciados em noites de ensaio na comunidade, receberem pessoas entregando panfletos com mensagens evangélicas durante suas atividades e, até mesmo, embate entre grupos distintos. “Eles estão vindo com a ideia de converter o pessoal, o discurso ficou eufemístico, um eufemismo muito grande de parecer que tá fazendo algo puramente pela cultura mas tá fazendo um ataque meio suave. Eles estão chegando nos grupos, chamando as pessoas pra saírem dali que aquilo ali não é coisa boa, ´é coisa do capeta, venha pra igreja porque aqui tem disso que você gosta’. É uma apropriação intencional, não tão fazendo só porque gostam do ritmo. Eles estão fazendo isso pra tirar as pessoas da tradição. Antes eles faziam só pela música, e hoje eles começaram a utilizar algumas estratégias e essa é uma delas e perigosa. A gente está muito preocupado com essa postura”, diz Walter França Filho, presidente do Maracatu Nação Raízes de África, que tem quase 30 anos de existência.
Mestre Walter e Walter Filho, do Maracatu Nação Raízes de África, sediado em Água Fria. Foto: Paula Brasileiro/LeiaJáImagens
Walter é filho de um dos mais importantes mestres de maracatu nação de Pernambuco, Walter França. À frente do Raízes de África, o mestre também demonstra preocupação com o crescimento dos batuques evangélicos mas já tem preparada a defesa de sua nação. “A gente aqui vai fazer um bocado de toada de maracatu, quando eles entregarem um ‘santinho’ a gente entrega duas toadas a ele. Se eles dizem que é uma brincadeira do diabo, do satanás, o que é que eles vem fazer no lugar do satanás? Ele não vai adquirir alma assim. Deus disse, desde que a gente esteja em um canto cantando musica, a gente está alegrando outros corações, ali não tem maldade. Não se muda as coisas assim. Do jeito que tá acontecendo, é uma violência. É Iran e Iraque”.
Preocupados, batuqueiros, mestres e lideranças das nações pensam em procurar meios legais para resguardar suas tradições. Wanessa e Walter Filho contam que a Associação dos Maracatus de Pernambuco (Amanpe), se prepara para acionar o Ministério Público no sentido de buscar meios para se defender de possíveis ataques e intolerância religiosa. “Nós de terreiro somos tão educadas, se a gente tiver fazendo um arrastão (quando se toca caminhando pelas ruas) e passar na frente de uma igreja a gente para. O vizinho evangélico faleceu, a gente não ensaiou. Tem pessoas que denunciam os ensaios, mas a gente respeita. Mas o bom é que, mesmo com as dificuldades, a gente faz um trabalho de conquista na comunidade. Movimenta a comunidade, nossos eventos movimentam a economia da comunidade, então a gente mostra que tá aqui, tem o momento do som, mas é melhor o som do que os jovens estarem na inércia, fazendo besteira”, diz Adriano, Mestre do Cambinda Estrela.
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Sendo maracatuzeiros e evangélicos de universos tão distintos e distantes, existe maneira de ambos coexistirem e tocarem em harmonia? A possibilidade se coloca como um verdadeiro desafio e os questionamentos vêm dos dois lados. “O curioso é que antes era tudo ‘do cão’, se as pessoas que estavam tocando ‘pro cão eram do cão’, por que hoje tocar a música que era ‘do cão’? Tá o que, convertendo a música? Existe esse ato de conversão? O que é a fé? Quando nós estamos fazendo maracatu existe um lado religioso mas você não precisa ser religioso pra estar no maracatu, se esse pessoal se interessa pela música é até interessante porque acaba quebrando um pouco aquele discurso que eles tinham antes. Então isso quer dizer que a gente não é ‘do cão’. O que mudou? O cão mudou? Quais as intenções que eles tem em cima do maracatu?’, questiona Walter Filho. Wanessa, do Cambinda, endossa: “Não é coisa do mundo, do demônio? Então pra que fazer um maracatu de Jesus? É uma contradição”.
Já o Mestre Adriano e o pastor Ricarte concordam, pelo menos, em um ponto, dificilmente nações e grupos percussivos evangélicos conviveriam em harmonia. “Grupos de percussão a gente convive com todos, mesmo com aqueles que querem ser mais maracatu que as nações. Mas esse ‘maracatu da salvação’ não rola. O discurso é muito pesado, preconceituoso, Infelizmente são pessoas que acham que pra conquistar tem que destruir. A gente não trabalha nesse processo de destruição e violência”, diz o primeiro. O segundo tem opinião semelhante: “Eles acreditam na apropriação cultural, eles não conhecem a nossa verdade. Estão cegos e cabe aos que enxergam, o povo de Deus, ajudá-los na compreensão de que os tambores foram criados com o objetivo de louvar o Senhor. Respeito, sim, harmonia, não. Não dá para misturar óleo e água. Eles tocam para os seus deuses e nós para o Rei dos Reis e Senhor dos senhores. Respeitamos sua cultura mas não nos unimos a eles”.
O Ministério Rugido do Leão ganha as ruas no Carnaval com seus 132 integrantes. Foto: Cortesia
Já Samuel, do Tangedores, vai além. O líder do batuque ressalta a importância do respeito e frisa que seu grupo não busca agredir nem atacar quem quer que seja, e que existe uma “generalização” do senso comum no que diz respeito ao comportamento dos evangélicos. “As pessoas que falam isso podem ter tido uma situação com determinado grupo e gerou esse sentimento. Entre os próprios maracatus nação existe uma intolerância absurda entre eles. Os maracatus só se juntam, eles não se unem, eles só se juntam na abertura do Carnaval porque estão todos no mesmo ideal que é a invocação da comemoração para o início do Carnaval, fora aquele dia, se um maracatu tiver tocando aqui o outro não passa. A intolerância tá no meio deles, entre eles".
Samuel busca no passado, uma explicação para o momento presente: "Se você for falar de coisa musical, a gente não podia tocar um samba porque só quem pode tocar são as escolas de samba do Rio de Janeiro, então, essa questão de dizer que a gente tá se apropriando, não é. A história do maracatu não é religiosa, a história do maracatu era uma apresentação musical que era feita pelos negros e escravos para o rei e a rainha de portugal, os maracatus nação usam entidades que são os guias dos grupos, mas os primeiros faziam como homenagem, como existiam os bobos da corte, era uma diversão”. Larissa Serpa, batuqueira do Tangedores, sintetiza o sentimento dos seus: “A gente só tá resgatando algo que já é nosso, baseado na bíblia”.