Os países do G-20 decidiram abrandar o tom ao tratar da guerra na Ucrânia com objetivo de chegar a um comunicado conjunto de consenso na Cúpula em Nova Délhi. O documento poupa a Rússia. Os países ocidentais aliados da Ucrânia, sobretudo do G-7, precisaram fazer concessões para incluir palavras que agradam a Moscou, além de contemplar preocupações da China.
Os líderes reunidos na Índia aprovaram a remoção de um trecho inteiro do texto, que exigia a "retirada total e incondicional das tropas russas do território ucraniano". O novo comunicado, conhecido como "Declaração de Líderes do G-20 de Nova Délhi", não fala mais em condenação da guerra, nem sequer cita a invasão e a ocupação militar realizada pela Rússia, em fevereiro de 2022.
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Antes, o G-20 afirmava que, embora houvesse visões distintas sobre o conflito e sobre as sanções decorrentes dela contra os russos, a maioria dos membros condenava fortemente a guerra. A declaração anterior, assinada em Bali (Indonésia), no ano passado, citava ainda que a maioria dos países "deplorava nos termos mais veementes a agressão da Federação Russa contra a Ucrânia".
As sanções não são mais objeto de menção no texto. Rússia condiciona a reabertura do corredor de exportações do Mar Negro à suspensão delas. Na declaração, os países apelaram por uma implementação rápida dos acordos, intermediados na Turquia, de exportação de grãos, cereais e fertilizantes, produzidos na Ucrânie e na Rússia: "Isso é necessário para satisfazer a demanda nos países em desenvolvimento e menos desenvolvidos, particularmente aqueles na África".
Em trecho considerado relevante por negociadores, exigiu-se compromisso com alguns princípios: "Todos os Estados devem abster-se da ameaça do uso da força ou de procurar a aquisição territorial contra a integridade territorial e a soberania ou a independência política de qualquer Estado. O uso ou ameaça de uso de armas nucleares é inadmissível".
A Declaração de Líderes de Nova Délhi foi adotada neste sábado, 9. O primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, anunciou que os líderes das principais economias do mundo haviam chegado a um acordo, batendo na mesa repetidas vezes em comemoração.
"Com base no trabalho árduo de todas as equipes, obtivemos consenso sobre a declaração da Cúpula dos Líderes do G-20?, afirmou o indiano.
Nos últimos dias, os diplomatas que coordenam as negociações se debruçaram sobre os temos do texto. As conversas haviam travado justamente no assunto da guerra, embora houvesse entraves também no conteúdo sobre a redução do uso de combustíveis fósseis, depois superados.
Havia o risco de que as tratativas não avançassem na direção de um comunicado consensual, como de praxe, o que seria considerado um fracasso diplomático. Isso poderia significar, na prática, um esvaziamento do G-20, o que não interessa agora aos países do G-7, sobretudo depois da expansão do Brics, impulsionada pela China, para criar um mecanismo alternativo de discussões globais, em sua órbita.
Segundo fontes a par das negociações, os países do IBAS (Índia, Brasil e África do Sul) trabalharam a favor da construção de um comunicado de consenso, junto da Indonésia. Para isso, foi preciso fazer concessões e trabalhar com base numa linguagem "mais genérica" sobre a guerra, conforme diplomatas.
Os russos estavam dispostos a bloquear o avanço da declaração de líderes. No ano passado, ela ficou pronta de última hora e incluiu uma menção dura contra a Rússia, por maioria de votos, o que não é o costume. Em geral, os texto são assinados somente depois de consenso entre todos os integrantes do bloco.
Moscou protestava contra isso, e dizia que essa era uma prática forçada pelos países do G-7, liderados pelos Estados Unidos, que tentavam impor a "ucranização" da agenda global em espaços não apropriados para essa discussão, desconsiderando seus argumentos.
O G-20 também menciona agora que é o "principal fórum para cooperação econômica internacional", exatamente como argumenta a diplomacia chinesa. Essa é uma forma de Pequim explicitar que os assuntos de geopolítica e guerra, no seu entendimento, deveriam ficar em segundo plano nas reuniões do grupo.
Em paralelo ao G-20, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ecoou essas preocupações russas e chineas. Segundo a Presdiência da República, Lula afirmou ao presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, que o G-20 "não pode fixar as discussões apenas na guerra entre Rússia e Ucrânia, porque há outras crises no mundo, como a fome, a pobreza extrema e os desafios climáticos, que demandam atenção imediata".
Com anúncio de última hora, os presidentes da Rússia, Vladimir Putin, e da China, Xi Jinping, foram os dois principais ausentes da cúpula em Nova Délhi. Eles enviaram representantes.
O G-20 também lembrou que cada países tem posições próprias, já manifestadas no Conselho de Segurança das Nações Unidas e na Assembleia Geral da ONU e que "todos os Estados devem agir de forma consistente com os propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas, na sua totalidade".
O G-20 lembrou ainda que a guerra na Ucrânia causa sofrimento humano e impactos negativos na segurança alimentar e energética, bem como nas cadeias de suprimento, na estabilidade financeira, na inflação e no crescimento econômico. Além disso, reconheceram que a guerra tornou mais complicadas ações ambientais, especialmente nos países em desenvolvimento, que se recuperam ainda da pandemia da covid-19 e suas consequências econômicas. Mais uma vez houve divergências de avaliação e visão no assunto.
"Apelamos à cessação da destruição militar ou de outros ataques a infraestruturas relevantes", diz o comunicado final. "Vamos nos unir no esforço para enfrentar o impacto adverso da guerra na economia global e saudamos todas as iniciativas relevantes e construtivas que apoiam uma paz abrangente, justa e duradoura na Ucrânia."
Os países, por fim, assinaram um acordo dizendo que o G-20 deve continuar a funcionar na base do consenso, uma preocupação russa, e mencionaram a realização da Cúpula de 2026, nos Estados Unidos, o que a China tentava objetar, no que foi interpretado como uma forma de barganha nas negociações. A edição de 2024 será no Brasil, e a de 2025, na África do Sul. A Arábia Saudita quer assumir a presdiência depois.
Diante da pressão chinesa, Índia, Brasil, África do Sul e Estados Unidos - atual e futuros anitriões do G-20, nesta ordem, de 2023 a 2026 -, divulgaram um comunicado conjunto, no qual reafirmam o compromisso com o bloco, "principal fórum para a cooperação econômica internacional, buscando soluções para o nosso mundo".
"Continuaremos avançando a partir do progresso histórico alcançado na presidência da Índia para enfrentar os desafios globais. Neste espírito, juntamente com o presidente do Banco Mundial, nós saudamos o compromisso do G-20 de tornar bancos multilaterais de desenvolvimento maiores, melhores e mais eficazes", disseram os quatro países.
O comunicado final também confirmou a adesão da União Africana, como novo membro permanente do G-20, o que havia sido anunciado por Modi.
Meio Ambiente e Europa
Em recado que repercute nas negociações do Brasil e demais países do Mercosul com a União Europeia, os países do G-20 se comprometeram a "evitar políticas econômicas verdes discriminatórias", em linha com regras previstas em acordos climáticos e na Organização Mundial do Comércio.
O Brasil reclama de legislações europeias recentemente aprovadas que, no entendimento do governo federal, podem gerar retaliações a produtos do agronegócio e fechar mercados. Elas atrapalham as negociações do acordo comercial entre os dois blocos.
Ao passo que contempla a cobrança do presidente Lula por mais recursos para financiamento da manutenção de florestas, que haviam sido prometidos no Acordo de Paris, o G-20 também exigiu a prevenção e combate a incêndios florestais e recuperação de danos provocados pela mineração clandestina.