Desde Metrópolis, de Fritz Lang, as temáticas da ficção científica cinematográfica volta e meia retomam o assunto da divisão radical da humanidade em duas classes sociais: opressores e oprimidos. Tal prognóstico foi formulado por Karl Marx como uma tendência que, em última análise, seria o quadro social do desenrolar do capitalismo. Pois bem, acontece que Fritz Lang (e diversos literatos do gênero) resolveram criar alegorias para representação dessa teoria, seguindo um dos papéis que a arte cumpre: levar ideias ao limite, ou radicalizar para demonstrar. Chegamos então ao filme Elysium, herdeiro mais jovem de toda essa linha temática.
Analisando-o dentro desse contexto, é preciso dizer que ele não agrega nada à ficção científica: todas a suas ideias, elementos inventivos e temas, já encontram precedentes. Já em relação ao cinema, ele contribui mantendo viva uma tradição de filmes sci-fi com um conteúdo interessante para reflexão do público acerca do tema da segregação social, podendo ser visto até mesmo como contraponto às bobagens que foram sacudidas ao público no primeiro semestre.
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A história de Elysium se passa em 2154, onde os ricos debandaram da Terra, arrasada e insalubre, para viver numa estação espacial (chamada Elysium) que emula um ambiente sadio. Após ser exposto à radiação, Max da Costa (Matt Damon, muito competente) tenta desesperadamente chegar ao paraíso dos ricos para ter acesso a uma das máquinas capazes de curar instantaneamente, além de outros tratamentos milagrosos (ou seriam tecnológicos?). Neill Blomkamp, que é roteirista e diretor, não poderia ter feito escolha mais pertinente, pois não há tema que revele mais bruscamente a desumanidade do sistema social vigente do que o acesso à tratamento de saúde, especialmente nos Estados Unidos, onde o setor é totalmente privatizado.
Impressionaram-me bastante a qualidade de dois aspectos técnicos do filme: fotografia e efeitos especiais. A fotografia de Trent Opaloch, quando apresenta o cenário terrestre, utiliza-se de tons claros que fazem oposição ao acinzentado do concreto; a luz é intensa, criando uma ideia de sol escaldante e incômodo. Por outro lado, quando vai a Elysium, temos a mesma sensação de claridade, só que, dessa vez, amena e reconfortante, trabalhando em harmonia com mansões de cores claras e gramados verdejantes. Junto à fotografia, os cenários cumprem a sua parte para realizar transições perfeitas entre os núcleos: o caos estético da favela (a farda de operário de Max se confunde com a de um presidiário), a singeleza da casa da classe média, e o requinte da Beverly Hills espacial são apresentados em detalhes.
Além da arquitetura e clima, outros elementos (como os idiomas falados) concluem a tarefa de criar paralelos entre os dois núcleos extremos com a distinção que vemos, em geral, do terceiro mundo para o primeiro. Em relação aos efeitos especiais, assistimos a um show de Blomkamp: as cenas de transformação física dentro capsula mági… ops… curativa, os tiros explosivos do rifle de Max se chocando contra o escudo do vilão, a tomada externa da estação espacial, os ferimentos sanguinários, são alguns dos inúmeros exemplos de uso consistente e irretocável de CGI que dão vida à imaginação do diretor. As sequências de ação também são muito bem conduzidas, tendo o cuidado de fazer com que os personagens ajam de acordo com o que são: fica claro o despreparo do civis para lutar e usar armas.
Em relação aos pontos fracos, não podemos deixar de citar montagem e terceiro ato do roteiro. A montagem se apresenta confusa, deixa pontas soltas na narrativa e apresenta alguns atropelos. Exemplos disso é a conclusão na mosca que a secretária Delacourt (Jodie Foster, um cubo de gelo) chega acerca dos planos de Max quando ele inicia a viagem à Elysium, sem que haja ainda nenhuma informação dada à personagem que amparasse tal raciocínio, ou a facada que quase derruba Max, mas que já na sequência seguinte não apresenta qualquer consequência. Há outros exemplos, mas o que interessa aqui é que chegamos à conclusão a montagem não ajuda nem um pouco o roteiro de Blomkamp, que não parece ser capaz de lidar satisfatoriamente com centenas de coisas acontecendo ao mesmo tempo na narrativa.
Em relação ao terceiro ato da fita, observamos que ele sofre com a demência dos filmes de ação. Tem se tornado regra geral nas ficções hollywoodianas os filmes descambarem repentinamente para o gênero, e a sua correria. E, embora eu reconheça isso como salutar para atração de público, incomoda-me bastante, pois as questões filosóficas levantadas ficam sem desenvolvimento e resolução, [SPOILER] além do que, é lugar comum que filmes de ação se encerrem com ambulâncias chegando e paramédicos atendendo feridos, e Elysium se encerra com uma simples variação disso. Uma pena.
Mas as falhas não tiram o brilho de uma produção que também é cheia de acertos. Além de tudo que já foi citado, é preciso destacarmos a escolha de um elenco de nacionalidades diversas. Trazer atores latinos foi uma decisão política que reforça os objetivos do filme (embora o grande herói ainda seja um anglo-americano, e isso também é carregado de significados), e é claro que não poderia deixar de ser destaque, para nós, o trabalho de Wagner Moura (como Spider) e Alice Braga (como Frey). Alice foi perfeita, mostrou algo semelhante ao que fez em Ensaio Sobre a Cegueira, sendo dona da melhor interpretação dentre todos os atores de Elysium. Wagner Moura não fez por menos e levou o seu personagem a crescer à altura do protagonista (notícias durante a filmagem diziam que sua participação seria curta), dando vida a uma persona original, excêntrica sem ser imbecil, distinta de coisas que já fez e daquilo que já vi no cinema de Hollywood.