O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse em entrevista ao jornal espanhol El País que as recentes manifestações de protesto no Brasil são "saudáveis". "Um país que era a décima economia do mundo e que em 2016 será a quinta economia do mundo produziu uma sociedade que quer mais. Isso é normal", afirmou Lula.
Para ele, "a sociedade descobriu que pode aspirar mais. Em dez anos, nós conseguimos passar de 3 milhões de formados em universidades para 7 milhões de estudantes. Temos que enaltecer a participação democrática, e não permitir que os jovens reneguem a política, porque quando isso acontece, o que vem é o fascismo. Queremos que os jovens discutam abertamente, para que sintam que fora dela não há outro caminho".
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Descrito pelo El País como "a referência para a esquerda global civilizada", Lula disse que "depois do consenso entre Margaret Thatcher e Ronald Reagan, o mundo passou a ser governado por uma lógica muito burocrática, técnica, com menos política. A economia começou a determinar o rumo dos governos, e não ao contrário. Isso, em minha opinião, é um grande erro. Se você é um bom político, será capaz de montar uma boa equipe técnica. Mas se é um bom técnico, talvez não seja capaz de tomar boas decisões políticas".
Ele citou o exemplo do governo de Sebastián Piñera no Chile - a quem descreveu como "um grande empresário que está descobrindo que o exercício do governo, lidar com interesses diversos e contrários, é mais difícil do que tomar uma decisão para sua empresa. (...) A Europa, em minha opinião, enfrenta uma situação que afeta todo o mundo por falta de uma decisão política, e não econômica. Antes, quando as crises afetavam a Bolívia ou o Brasil, o FMI sabia tudo. Por que ele agora não tem ideia de como resolver a situação? Porque é um problema político. As decisões não foram tomadas no momento adequado. No fundo, se permitiram os mesmos ajustes que se fazem nos países pobres. A Espanha ou a Grécia, com sua renda per capita, poderia assumir ajustes de prazo mais longo, não num período tão curto, asfixiando a economia, na base de sacrifícios enormes, sem levar em conta o quanto vai custar para os povos se recuperarem. Os técnicos são especialistas em salvar bancos".
Lula acrescentou que "até o momento foram gastos quase 10 trilhões de dólares para resolver a crise, e não conseguiram. Também não se veem sinais claros para o curto prazo. Com esse dinheiro, quanto não se poderia fazer para elevar o nível de vida dos mais desfavorecidos na América Latina ou na África? Acredito que se a política tivesse prevalecido sobre o tecnicismo e a burocracia, a gente sofreria menos. No momento em que o mundo precisava de mais comércio, ele diminui; quando precisávamos de mais emprego, ele também foi rebaixado. E os banqueiros até agora não pagaram a conta".
Destacando que o Partido dos Trabalhadores (PT) "é o mais importante da esquerda na América Latina", Lula observou que a agremiação "era um partido pequeno que passou a ser grande, e, como tal, foram aparecendo defeitos. Gente que valoriza demais o Parlamento, outros que valorizam os cargos públicos..." Para ele, "as pessoas tendem a esquecer os tempos difíceis em que para nós era bonito carregar pedras. Acreditávamos, era maravilhoso. Um grupo mais ideológico, a gente trabalhava de graça, de manhã, de tarde, de noite. Agora, você vai fazer uma campanha e todo mundo quer cobrar. Não quero voltar às origens, mas o que eu gostaria é que não esquecêssemos para que fomos criados".
Sobre denúncias de corrupção, Lula disse duvidar "que exista no mundo um país com a quantidade de fiscalizações que o Brasil tem. 90% das denúncias que se apresentam são feitas pelo próprio governo. Contratamos policiais, reforçamos os serviços secretos, fortalecemos o controle das contas do Estado... Quanto mais transparência, melhor. Mas o que não se pode admitir é que depois de uma pessoa se submete a um processo e não se descobre nada, ninguém pede desculpas. Por isso me preocupam essas condenações a priori. No caso dos companheiros do PT, já foram previamente condenados. Alguns meios de comunicação o fizeram, independentemente da decisão da Justiça, como numa pena de prisão perpétua. Alguns não podem nem sair à rua. Insisto, devemos ser 150% corretos, porque se nos equivocamos em 1%, aos olhos de nossos adversários e de determinados meios de comunicação, levarão isso a 1.000%".
Indagado sobre o fato de seu governo ter investido na defesa nacional sem pretender ter armas atômicas, o ex-presidente disse que "o Brasil deve contar com Forças Armadas dignas de sua grandeza. Devemos proteger nossas reservas de petróleo, nossa floresta, nossa fronteira oceânica e terrestre. Formou-se um Conselho de Defesa para promover uma unidade militar tal como existe na política. Mas sem armas atômicas. Nossa Constituição proíbe a proliferação de armas nucleares, Não é o Lula, é a Constituição. Somos pacifistas".
A íntegra da entrevista em espanhol está disponível no site do jornal espanhol.