Aos 22 anos e no quinto período da graduação, Jéssica Nascimento constrói o sonho de se tornar médica/ Foto: Ricardo Araújo/LeiaJáImagens
##RECOMENDA##
Uma jornada integral e sete períodos pela frente separam Jéssica Nascimento, jovem negra e oriunda de escola pública, do diploma de bacharel em medicina. Aos 22 anos e no quinto período da graduação, ela constrói o sonho de se tornar médica na sala de aula e laboratórios da UNINASSAU, na Zona Sul do Recife, Jéssica, após não ser selecionada pelo Sistema de Seleção Unificada (Sisu), pleiteou uma bolsa integral no Programa Universidade para Todos (ProUni).
“Eu tive muito receio em cursar medicina e pensei em fazer outras coisas, porque, na minha visão, era algo que estava muito distante de mim, das minhas condições tanto financeiras, quanto de estudo mesmo, porque eu venho de escola pública desde a infância. Mas, eu resolvi tentar. Acredito que esse é o primeiro passo para a gente ter algo que quer e deseja muito”, afirma a universitária.
A entrada no ensino superior só foi possível através das ações afirmativas existentes no ProUni: bolsas reservadas a grupos específicos da população, como pessoas com deficiência, autodeclaradas pretas, pardas e indígenas. Ela relembra a espera por um possível remanejamento em uma universidade pública e que, diante do cenário de incerteza, decidiu aproveitar o início das inscrições do programa de assistência estudantil. “Ao todo, o programa ofertava sete bolsas integrais. Eu não fui selecionada na primeira chamada, apenas na segunda. Foram muitas idas e vindas ao cartório, porque toda documentação apresentada deveria estar autenticada. Além disso, tive que apresentar uma declaração, escrita à mão, a qual me autodeclarava negra”, explica.
A universitária fala com orgulho da origem e ressalta que o apoio da família foi fundamental para o início da jornada acadêmica. “Diante das minhas inseguranças na escolha do curso, minha mãe sempre me apoiou em tudo. Meu pai teve um pouco de receio quando contei que optei por medicina, mas também tive apoio dele. Meus pais não concluíram o ensino médio e eu serei a primeira da família com uma formação superior, serei a primeira médica”, comenta a estudante.
Dos graduandos em medicina que realizaram o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade), em 2016, e ingressaram por meio de políticas de ações afirmativas ou inclusão social, apenas 8,1% se declararam de cor ou raça preta. Em contraponto, discentes da mesma categoria, no entanto, autodeclarados de cor ou raça branca representaram cerca de 45,7 % no exame.
Para o cientista político e professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Michel Zaidan, o período escravocrata deixou sérias sequelas que atingem, inclusive, a educação nacional em seus mais variados níveis. “A excludência não é só econômica, ela é racial, ela é étnica também, diga-se de passagem. Nós temos uma herança escravocrata pesada e nunca foi resolvida. No Brasil, ela é escondida. Aqui, em razão da pseudodemocracia racial, esse é um problema escondido que as pessoas têm o problema em assumir que há uma questão racial brasileira. Claro que isso pesa no cotidiano, nas relações sociais de uma maneira geral. Até se resolver esta questão vai demorar muito tempo, porque ela não é só uma questão de política pública, ela é uma questão cultural”, explica Zaidan.
[@#video#@]
“O Prouni é uma oportunidade de ter acesso ao que nos é negado de diversas formas todos os dias”
Na tentativa de promover o acesso ao ensino superior, sobretudo, privado, as ações afirmativas do ProUni surgem como reparação histórica e iniciativa de inclusão e equidade. Ainda a passos lentos, o programa vai democratizando os espaços acadêmicos, anteriormente, ocupados por uma elite financeira. “Cotas de renda são extremamente necessárias e por mais que haja um debate muito desonesto em relação às cotas raciais, elas também são uma reparação histórica mais do que necessária. Nós, pretos e os pardos, precisamos ocupar os espaços elitizados do país e ganhar voz. Graças às cotas estamos conseguindo. Não tem absolutamente nada a ver com capacidade, mas sim com oportunidade”, observa a estudante de fisioterapia Raynara Oliveira.
Moradora da cidade de Abreu e Lima, Região Metropolitana do Recife, Raynara divide seu tempo entre a graduação, monitoria e trabalho no programa Jovem Aprendiz na área administrativa. “Moro longe, então, levo mais de duas horas para chegar à faculdade. Nas quintas, dou aula de monitoria. Depois de largar da faculdade, eu trabalho, de 13h30 às 17h30, para conseguir um dinheiro para manter os custos do curso, como material, livros, passagem, entre outras despesas”, relata a jovem.
Raynara divide seu tempo entre a graduação, monitoria e trabalho no programa Jovem Aprendiz na área administrativa/Foto:arquivo pessoal
Apaixonada pela área de saúde, a estudante viu na fisioterapia uma oportunidade de trabalhar com o que gosta e um meio de interação com pessoas diversas. No entanto, o contexto social da família não era favorável para o ingresso em uma instituição de ensino privado. “Minha família não tem condições de pagar [a faculdade], minha mãe é desempregada e não moro com meu pai. Ele não paga pensão, nem muito menos ajuda com os custos, por isso, eu tenho que trabalhar em outro horário. O ProUni é uma oportunidade de ter acesso ao que nos é negado de diversas forma todos os dias, principalmente, para jovens negros e pobres como eu”, afirma.
A graduanda em fisioterapia, que estudou a vida inteira em instituições privadas como bolsista, em razão da tia professora, aponta a importância do programa para o acesso ao ensino superior. “Duas tias são formadas, uma em letras e outra em marketing, além do meu irmão mais velho, que está cursando a graduação de ciências contábeis também graças ao ProUni. Tenho uma gratidão enorme pela existência do programa, pois, como já afirmei, minha família não tem condições de arcar com os custos do meu curso. E é muito incrível, não só para mim, quanto para eles, saber que através dos estudos e da minha dedicação, em todos os anos de escola, hoje, consigo fazer minha graduação gratuitamente”, conta Raynara.
Nessa perspectiva, Michel Zaidan traça alguns aspectos positivos acerca do programa, como a inserção das classes mais abastadas no ensino superior. Entretanto, o cientista político ressalta que, mesmo com a crescente demanda pelos programas de assistência estudantil, há necessidade de um investimento maior na educação básica pública, a qual apresenta deficiências de ensino e estrutura, o que refletirá no desempenho dos discentes ao longo da trajetória educacional.
“Infelizmente, a nossa universidade recebe uma percentagem muito pequena da população estudantil, porque para a pessoa chegar no ensino superior é muito difícil, devido ao déficit ao longo do tempo no ensino básico [fundamental e médio] e assim por diante. Quando chega à universidade, a pessoa tem um enorme acúmulo de deficiências que não serão sanadas no ensino superior”, critica.
Para ele, o acesso à educação tem que ir além do assistencialismo e focar também na permanência dos estudantes nas graduações. Sobre isso, Michel Zaindan detalha no áudio a seguir:
[@#podcast#@]
Quinze anos de universalização do ensino superior particular e desafios
Criado em 2004 e assegurado pela Lei nº 11.096/2005, promulgada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o para ProUni completa 15 anos em 2019. Para pleitear uma bolsa integral ou parcial, os estudantes precisam ter conhecimento dos requisitos e regras do programa antes do ato de inscrição. Logo, o candidato precisa ter cursado todo o ensino médio em escola pública ou em instituição privada na condição de bolsista integral.
Em caso de requerentes com deficiência e professores da rede pública, no exercício do magistério, não é necessário atender ao requisito de renda (1,5 salário mínimo). Do ato de inscrição até a matrícula, os estudantes precisam comprovar as informações repassadas ao programa, através da documentação exigida e entregue a IES escolhida.
Nestes 15 anos, de acordo com dados divulgados e fornecidos ao LeiaJá pelo Ministério da Educação (MEC), foram mais de três milhões de bolsas, parciais e integrais, até o segundo semestre de 2018, oferecidas para estudantes de todas as regiões do Brasil. O apontamento demonstrou ainda que a maioria dos contemplados é de raça branca, cerca de 43%, seguido de pardos, 41,1%, e pretos, 12,6 %. O cenário chama atenção para o baixo quantitativo de indígenas nos espaços acadêmicos, aproximadamente 0,1%.
No que se refere às políticas afirmativas dentro do programa, o MEC realizou um levantamento dos cursos superiores, em instituições privadas, que mais receberam bolsistas/cotistas desde a criação até o ano de 2018. O resultado indica que o bacharelado em administração ocupa o primeiro lugar entre os “prounistas” que se autodeclararam pretos, pardos ou indígenas e pessoas com deficiência. As graduações em direito e pedagogia, respectivamente, aparecem em segundo e terceiro lugares.
Diante do contingenciamento de verbas destinadas à educação, anunciado pelo Ministério da Educação, em abril deste ano, alguns prounistas se sentiram ameaçados. “Eu recebia a notícia do corte com um pouco de medo, porque não sabia a que ponto isso poderia afetar as bolsas e continuidade do programa. Mas, resolvi não pensar tanto nisso para não interferir no meu desempenho”, conta Jéssica Nascimento.
Questionado sobre o tema, o MEC, por meio da sua assessoria de comunicação, foi categórica ao garantir a continuidade do ProUni. O órgão também afirmou que não terá redução das bolsas, tão pouco, mudanças no formato do programa. “As instituições de educação superior participantes do ProUni recebem, em contrapartidaàs bolsas de estudo ofertadas, isenção de impostos e contribuições, conforme disposto no art. 8º da Lei nº 11.096, de 13 de janeiro de 2005, não havendo, portanto, gasto de recursos do orçamento do Ministério da Educação para pagamento das bolsas concedidas no âmbito do programa”, explica a assessoria do Ministério ao LeiaJá.
Além disso, em meio às críticas ao atual governo, que é alvo de protestos, o MEC ressalta que é de interesse governamental dá continuidade a programas de assistência estudantil, como o ProUni e Fies. “Estes programas são instituídos por lei e têm como principal objetivo contribuir para a democratização e ampliação do acesso à educação superior e estão sendo continuados pelo governo”, finaliza a assessoria.
Reportagem faz parte do especial "Para que servem as cotas?", produzido pelo LeiaJá. O trabalho jornalístico explica a importância das cotas para a equidade e democratização dos espaços de educação brasileiros. Confira as demais reportagens:
1 - Cotas: sanção da lei marca o ensino superior
2 - A perspectiva social que explica a criação das cotas
3 - Cotas raciais valorizam diversidade no ensino superior
4 - Saiba como funciona as Comissões de Verificação de Cotas
5 - Inclusão de pessoas com deficiência marca Lei de Cotas
6 - Cotas rurais garantem ensino ao povo do campo
7 - A aldeia no campus: cotas e reparação histórica aos índios
8 - Cotas para trans esbarram em preconceito no ensino básico
10 - O que é mito e o que é verdade sobre a Lei de Cotas?
11 - Como seria um mundo sem cotas?