RIO DE JANEIRO - Onze dias após o assassinato brutal da vereadora Marielle Franco (PSOL) e seu motorista Anderson Gomes, o Rio de Janeiro vive mais um final de semana de sangue derramado nas favelas e comunidades do Estado. A violência denunciada pela parlamentar fez novas vítimas nos últimos dias: nove moradores mortos na Rocinha entre quarta-feira (21) e sábado (24), uma chacina que deixou cinco adolescentes mortos em um conjunto habitacional popular em Itaipuaçu, distrito de Maricá, na Região Metropolitana, e 3 policiais mortos num mesmo dia, totalizando 28 neste ano.
Os números corroboram com o último levantamento feito pelo Datafolha, em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o qual revela que 71% dos entrevistados não acreditam que a intervenção militar trouxe alguma melhora para a segurança pública. A pesquisa, que ouviu 1.012 pessoas entre quarta (20) e sexta-feira (22), também revela que 73% pessoas gostariam de deixar o Rio por conta violência.
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Instaurada no dia 16 de fevereiro, a intervenção também não agregou uma melhora à imagem de Michel Temer, segundo o levantamento do Barômetro Político Estadão-Ipsos de março, feito duas semanas após o anúncio da medida e antes da morte de Marielle. Os dados indicam um aumento de 93% para 94% na desaprovação de Temer, e a aprovação se manteve em 4%.
Apesar desse cenário, 76% dos cariocas seguem aprovando a intervenção, que deve receber R$ 1 bilhão de recursos do governo federal por meio de um crédito extraordinário, que será editado por Medida Provisória com vigência imediata. A liberação deve sair nos próximos dias. Segundo o general Walter Braga Netto, a intervenção ainda necessita de mais R$ 2,1 bi para quitar dívidas com fornecedores e colocar em dia todos os salários da segurança pública.
Para a professora do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF) Jacqueline Muniz, a ausência de um plano de segurança inviabiliza uma avaliação da intervenção militar, a qual considera muito dispendiosa e com poucos resultados significativos.
Integrante do Fórum Nacional de Segurança Pública, Jacqueline, que tem mais de 20 anos de pesquisas na área, critica o que chama de banalização do uso das Forças Armadas no Rio: "Trata-se de um recurso caro que só deve ser empregado de forma pontual e emergencial para não ser desqualificado em razão de suas limitações estruturais", enfatiza.
Confira a entrevista na íntegra:
LeiaJá - Qual a sua avaliação desse pouco mais de um mês de intervenção militar no Rio?
Jacqueline Muniz - É muito complicado falar sobre avaliação, já que não foi apresentado um plano de segurança. Como podemos aferir o que de fato foi feito, o que não avançou e o que precisa melhorar se não sabemos o quê? Sabemos, através dos observatórios que foram constituídos para acompanhamento das ações das denúncias vindas por parte de moradores de comunidades populares. Denúncias de que tem havido uso de força excessiva, seja por parte de alguns policiais ou de alguns integrantes das Forças Armadas. Mas isso é pouco para aferir resultados. É pouco mas não é menor, entende? O fato é que, sem um plano de segurança e sem uma apresentação pública dele, como também sem a participação mais efetiva da sociedade, é complicado aferir o que de fato está acontecendo nessa intervenção.
Por outro lado, o problema do discurso de uma intervenção, que não deixa claro a que veio ou o que vai fazer, é que estimula, na ponta, o "pode tudo" do policial, do criminoso, do cidadão amendrotado. Esse "pode tudo" significa uma desobediência generalizada, pela ausência de governos legitimamente eleitos. Quando você olha para cima, não há governo legitimamente eleito. Cada um se vê dono do seu próprio terreiro, do seu próprio território. O cidadão vai fingir que obedece à polícia, o policial finge que obedece à nova chefia, e a chefia finge que obedece ao interventor. Na síndrome da pequena autoridade, alguém vai fingir que obedece e alguém finge que está mandando. A lógica interventora estimula o "nós contra eles". E assim não sabemos onde começa e termina a cerca da proteção.
A execução da vereadora Marielle Franco coloca em xeque a permanência das Forças Armadas no Rio? Por quê?
JM: O atentado político à vereadora Marielle Franco, que vitimou também Anderson Pedro Gomes, revelou a fragilidade da intervenção. Se havia uma proposta de reestruturar o sistema de inteligência, o atentado mostrou que a inteligência constituída não foi capaz de detectar um tipo de atentado que é simples, sobretudo porque envolve uma parlamentar conhecida. O que aconteceu qualquer um poderia ter feito: bastaria ter vontade, disposição, oportunidade e uma arma na mão. Esse risco fez com que a cidadania no Brasil acordasse e visse o quanto nós podemos estar expostos. É por isso que a morte da vereadora virou um fato simbólico de grande repercussão. Quem pensa diferente coloca sua vida em risco, sem que o Estado possa lhe oferecer garantias mínimas de proteção.
Agora, as pessoas passarão a procurar "pelo em ovo" nas atividades do interventor federal e na gestão das polícias. Estamos todos atentos e alertas. E isso fará com que o interventor tenha que apresentar um plano à sociedade ou o que eles propuseram vai embora pelo ralo. Além de bárbaro, o atentado foi tosco. Não se constrói isso, se a ideia é se manter no poder. Está em risco a invulnerabilidade desses que estão no papel da intervenção, no exercício do governo.
Houve, em algum momento da história do Rio, uma ocupação militar que tenha deixado resultados positivos para a segurança pública? Qual?
JM: As operações que envolveram as Forças Armadas, apesar de caríssimas, não geraram resultados substantivos. O seu efeito ostensivo nas ruas tende a ser provisório e limitado, uma vez que as forças armadas são forças combatentes e, por isso, não dispõem da doutrina, dos meios e dos modos adequados para ação repressiva, dissuasória e preventiva das forças comedidas ou policiais para lidar com conflitos de pesquisa escala como a criminalidade violenta. Trata-se de um recurso caro que só deve ser empregado de forma pontual e emergencial para não ser desqualificado em razão de suas limitações estruturais. O uso das Forças Armadas tem sido banalizado.
O governo federal anunciou mais recursos para a intervenção, ao mesmo tempo em que aumentaram os questionamentos em torno da operação, principalmente após a morte da Marielle e os inúmeros confrontos que seguem acontecendo na Zona Oeste, no Alemão, Baixada, etc. Podemos ter alguma expectativa de que esses recursos serão bem aproveitados?
JM: Estima-se que foram gastos R$ 350 milhões na ocupação da Maré. Esta é uma estimativa mínima, chega a R$ 600 milhões. Com 10% disto, ou seja, R$ 35 milhões se estrutura toda a Inteligência da Polícia Civil do Rio de Janeiro, que precisa de R$ 3 milhões para isso. E, evidente damos um salto de qualidade. O fato é que os senhores da guerra ganham com isso, porque no Rio se governa com o crime e não contra o crime – o Caixa 2 vem do crime, mas é bom porque não precisa declarar no Tribunal Eleitoral. Já é ilegal mesmo, então você pode ser um "ficha limpa" com o dinheiro das facções criminosas. Tranquilo? Sem problemas? É isso. Então tem um ilusionismo, o efeito será esse...
Quando me perguntam o que espero da intervenção, respondo que o mesmo que ocorreu nas outras que implicaram em alto custo, e elevado risco. Em termos práticos, uma dispersão provisória na mancha criminal que não resolve a causalidade dos crimes cotidianos. O que se tem é um efeito ostensivo provisório e um gasto grande para um baixo resultado no controle efetivo do crime. Seja o crime cotidiano, seja a chamada dinâmica criminal organizada em rede.