Nos últimos anos, a expansão da internet possibilitou que muitos pudessem compartilhar suas ideias a respeito de qualquer assunto nas redes sociais e, com isso, receber respostas de maneira imediata. Mas, no momento em que uma opinião polêmica é emitida ou uma revelação desagrada parte dos usuários, grupos são formados e um processo de retaliação virtual torna-se quase que inevitável. Esse movimento ficou conhecido como cancelamento, e a suposta vítima tem a reputação destruída por aqueles que se julgam donos da verdade, com contratos de trabalho cancelados, ameaças, além de se tornar indesejada em diversos ambientes.
Os cancelamentos acontecem por diferentes razões, que variam de opiniões diferentes ou atitudes preconceituosas que desmerece alguém ou uma classe social. O caso mais recente ocorreu no reality show "Big Brother Brasil" (Globo), onde a cantora e rapper Karol Conká recebeu diversas críticas por conta das atitutes com os competidores Lucas Penteado, Juliette Freire, Arcrebiano Araújo e Carla Diaz. A repercussão negativa fez com que a artista fosse eliminada da atração com 99,17% dos votos. Após a saída do reality, ela busca por uma maneira de reverter o cancelamento e reconstruir sua imagem.
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Segundo o psicanalista Gregor Osipoff, é possível reverter um cancelamento e, durante o processo, o cancelado sofrerá consequências emocionais. Em alguns casos, pode ocorrer uma mudança de postura, que dará sentido a sua redenção. "Uma vez cancelado, fica uma marca não tão positiva. Muitas vezes, é como uma amizade requentada. Em outras ocasiões, um grupo em conjunto cancelou alguém como um recado de sua postura. Mas descancelar é muito mais difícil que seguir alguém pela primeira vez, a avaliação é mais complexa. Mas tudo é possível no mundo digital", afirma.
O universo digital contribui com a cultura do cancelamento e, embora seja comum ocorrer com influenciadores digitais famosos, também pode ocorrer com familiares e amigos que são favoráveis à postura do cancelado. Esse movimento também foi favorecido pelo isolamento social, causado pela pandemia do Covid-19, que tornou as pessoas mais ativas na internet. "O efeito é sempre negativo para quem é cancelado, mas é uma expressão de libertação para o cancelador, que por algum motivo usa isso como maneira de mostrar o seu descontentamento", define Osipoff.
No ano passado, foram vazados áudios do youtuber PC Siqueira, que supostamente o ligava a crimes de pedofilia. Por conta da repercussão, o influenciador digital teve contratos e parcerias canceladas, seu canal do youtube ficou desativado por meses, e ele também foi removido do projeto Ilha de Barbados, junto com Cauê Moura e Rafinha Bastos.
Apesar das investigações da Polícia Técnico-Científica (SPTC) de São Paulo não terem encontrado nada que incriminasse PC Siqueira, o cancelamento trouxe muitas consequências negativas em sua carreira. O Especialista em Marketing Digital e CEO da Global Mentoring Group Claudio Brito explica que o processo para provar a inocência ao YouTube é lento, pois a Justiça funciona de maneira devagar, enquanto a internet opera em uma dinâmica mais rápida. "Com isso, a pessoa perde o ritmo de internet, uma vez que um youtuber faz vídeos diários. Ter a sua conta suspensa significa dinheiro e contratos perdidos", destaca.
Ao ser acusado de maneira injusta e sofrer o cancelamento, o primeiro passo é provar a inocência, mas esse processo não será simples. "Enquanto isso ocorre, muita coisa se perde no caminho, pois a credibilidade está em jogo, seguidores serão perdidos, muitas pessoas vão deixar de comprar produtos vinculados aquela pessoa, e essa é uma guerra difícil de vencer. Mas existe a possibilidade em médio e longo prazo", descreve Brito.
O advogado especializado em Direito Civil e Criminal Émerson Tauyl aponta que o cancelamento e o tribunal da internet desconsideram as posturas esperadas de um estado democrático. Muitas vezes, o objeto de discussão são as pessoas ou empresas, e não as ideias. "Outra vertente seria a de que poucos preferem ouvir, entender e formar uma opinião madura antes de atacar. O mundo virtual trilha uma linha muito tênue entre a crítica construtiva e o ataque revestido e maquiado de ofensas. Devemos nos utilizar da boa e velha ferramenta, a empatia, pois não existe uma receita pronta", recomenda.
Na história, ainda não foi definido o momento exato em que a cultura do cancelamento surgiu, mas em 2017, a campanha #MeToo, que denunciava atos de assédio sexual e estupros no cenário de Hollywood, davam início a esse processo digital, que é tão discutido nos dias de hoje, e que ganhou força nos últimos tempos. "O crescimento das redes sociais, bem como de seus usuários, atrelados a pautas sociais necessárias ou polêmicas, como racismo, feminismo, movimento LGBTQI+, passaram a utilizar a internet para ganhar mais força e espaço para apresentar seus pontos de vista e experiências. Ao levar esse contexto a efeito, a própria cultura das redes sociais em si, por ser uma ferramenta não só de socialização, adquiriu características de ativismo", finaliza Tauyl.