"Pela mátria soberana, eis o povo no poder/São Marias e Joanas, os Brasis que eu quero ter/Deixa Nilópolis cantar/Pela nossa independência, por cultura popular", cantou o povo preto da marginalizada Baixada Fluminense em fevereiro deste ano, duzentos anos após uma das batalhas mais sangrentas que esse país de tamanho continental já enfrentou. Esse foi o hino da escola de samba carioca Beija Flor de Nilópolis, que no Carnaval deste ano teve como enredo "Brava gente, o grito dos excluídos no bicentenário da independência", no qual, fez o exercício de questionar alguns mitos cristalizados pela história “oficial”, e reacender a luta de três personagens fundamentais que não são devidamente reconhecidas: Joana Angélica, Maria Quitéria e Maria Felipa de Oliveira.
Na Bahia, estado que foi o berço dessas três mulheres, uma das festas que quase se iguala ao Carnaval em importância, alegria e irreverência é o 2 de julho, data que revisita o ano de 1823, quando a luta popular expulsou de forma definitiva as tropas portuguesas que insistiam em subjugar o Brasil.
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Ao contrário do que muitos acreditam, a independência não foi conquistada pacificamente após o grito de um colonizador às margens plácidas do rio Ipiranga, como foi desenhado no quadro “Independência ou Morte” do pintor Pedro Américo, e sim, através da participação popular que organizou motins, revoltas e levantes em prol de direitos e, sobretudo, pela liberdade. Por isso, as festas da emancipação são celebradas não com pompa militarista, mas em festejos de rua, onde o povo baiano reafirma seus valores.
Para a população do estado, não é o brado solitário do imperador que representa a libertação. O que demarca a independência, aquela que foi conquistada e não proclamada, é o ato incendiário de Maria Felipa, o sacrifício de Joana Angélica e a coragem de Maria Quitéria, junto aos nativos da região. Sendo assim, nada mais justo do que essa organização popular ter como símbolos, nomes femininos. Para as Marias e Joana - e para tantas outras que estiveram na linha de frente do movimento – o lugar da mulher era onde ela quisesse estar, mostrando que seus protagonismos e, os das suas anteriores, sempre estiveram presentes na história desse país.
"Quando nos debruçamos sobre os estudos desenvolvidos acerca da participação feminina no processo civilizatório, fica evidente que as mulheres nunca estiveram ausentes da história. No caso específico do Brasil, há inscrita a trajetória de mulheres em lutas revolucionárias em seus mais diversos campos, seja na conquista da independência do país, nas diversas lutas que ocorreram para o fim da escravidão, na luta pelo direito ao voto, em conquistas na área da saúde, da educação, habitação, entre outras. Ou seja, desde o campo às cidades, as mulheres participaram da construção do projeto de nação brasileira. De modo que quando falamos em protagonismo feminino na história do Brasil não há que se reservar o olhar apenas às lutas por igualdade de gênero, mas na construção do país e na consolidação do Estado Democrático de Direito", afirma a cientista social Elãine Dias.
Assim como tantas outras figuras femininas que sempre lutaram pelo país, e que são estudadas por pesquisadores e pela historiografia, as heroínas da independência também resistiram às ordens impostas que iam de encontro a direitos básicos da população. Elas estavam dispostas a interromperem as engrenagens da exclusão – material e simbólica – promovidas pelo autoritarismo da época contra o povo brasileiro, pois os instrumentos usados por Portugal controlavam e perseguiam aqueles que insistiam nas lutas por autonomia, justiça e inclusão social. Infelizmente, mesmo com estudos que investigam os processos emancipatórios, a história nacional ainda é contada para cada geração através de pequenos recortes de uma narrativa única. É uma obra política tecida pelos detentores do poder para forjar um sentido do que o povo brasileiro é enquanto nação, através da invenção e da seleção de símbolos pátrios. Enquanto eleva as imagens de colonizadores e pessoas brancas da elite social, provoca o apagamento da trajetória e da contribuição de indígenas, negros e mulheres, na identidade do país. Sendo assim, mesmo depois de 200 anos anos, as lutas de Maria Felipa, Maria Quitéria e Joana Angélica, continuam sendo esquecidas nas salas de aula das escolas do Brasil.
"A história oficial foi construída e difundida principalmente por homens brancos, letrados, escritores, que se valeram do poder simbólico de narrar seus feitos como grandes e triunfais", pontua Elãine. "Para se fazer uma análise razoável sobre o processo de invisibilização da participação de determinados grupos na história oficial, é imprescindível compreendermos que a sociedade se estruturou a partir de uma base colonial, escravocrata e patriarcal. Essa estrutura consegue adentrar todas as instituições sociais e reforçar as posições tanto de domínio quanto de subalternização, a fim de manter o status quo dos sujeitos, a partir de padrões de discriminações e preconceitos de várias ordens, a exemplo de raça e gênero, que, portanto, imporão barreiras que limitam o acesso de grupos como mulheres, negros e indígenas a espaços de poder, de acesso a direitos e de participação política", analisa a estudiosa.
Joana Angélica, a Madre que deu a sua vida para proteger seus ideais
Por volta das 11 horas do dia 20 de fevereiro de 1822, a cidade de Salvador estava sendo cenário de uma das cenas mais violentas registrada na história do país: uma religiosa de 60 anos que tentava resguardar a integridade das freiras do Convento da Lapa e impedir a invasão das tropas portuguesas no local, era morta covardemente a golpes de baioneta por soldados do brigadeiro Madeira de Melo, chefe do Exército português que combatia no estado, os grupos pró-independência.
"Para trás, bandidos! Respeitem a casa de Deus! Recuem: só conseguirão penetrar nesta casa passando por cima do meu cadáver!", disse a Madre antes de morrer, defendendo as tradições da religião - protegendo o claustro como um local, pois dentro de um convento feminino, homens não podem entrar -, e ao mesmo tempo, desprezando os interesses e as ordens do autoritarismo daquela época.
"Havia uma grande pressão das Cortes portuguesas, que estavam no poder em Portugal, em relação ao controle das regiões brasileiras. Em busca por autonomia administrativa, muitos movimentos de resistência dentro do Brasil foram desenvolvidos, principalmente na região do nordeste brasileiro. Na ocasião da atuação de Joana Angélica, o conflito se dava entre tropas brasileiras e portuguesas, estas últimas adentrando a Bahia para reafirmar seu poder. Com isso, os portugueses invadiram o Convento da Lapa, lugar onde Joana Angélica vivia desde os 20 anos de idade. Na condição do seu cargo, ela se colocou na frente da tropa para impedir que eles invadissem o lugar – os portugueses acreditavam que as irmãs estavam escondendo homens e armas das tropas brasileiras", disse a historiadora Geovanna Trevelin em entrevista, ao relatar o episódio que provocou um clima de consternação na Bahia, e que foi um dos estopins da revolta dos que já lutavam pela emancipação.
Vale ressaltar, que o início daquele ano, já era marcado pelas reações dos setores populares contra a nomeação do general português Madeira de Melo, para o cargo de governador das Armas do estado. As tropas baianas e a população não aceitavam a nomeação imposta por Lisboa. Sendo assim, movimentos para impugnar a posse, terminaram impulsionando um embate entre os populares e os soldados que clamavam por independência contra o general e seus comandados.
O ponto alto da batalha naquela Salvador do início do século 19, foi a tomada do Forte de São Pedro, onde o brigadeiro Manuel Pedro de Freitas Guimarães, comandante nativista, acabou sendo capturado, preso e enviado para Portugal. Não satisfeitos, os soldados portugueses perseguiram os brasileiros que escaparam do Quartel da Mouraria, que ficava próximo ao Convento da Lapa. A tropa então, foi até o local que abrigava centenas de freiras para verificar se os brasileiros tinham procurado esconderijo, assim como também, inspecionar se o templo guardava armas.
Os portugueses acusaram as religiosas de terem usado o espaço como abrigo para os soldados nativos. Após seus atos criminosos, alegaram a sociedade que agentes pró-independência haviam se escondido no convento e atirado nas tropas lusitanas de dentro do edifício, algo que atualmente é contestado por historiadores, ao afirmarem que os portugueses invadiram diversos locais, praticando uma série de violências, e depois as justificando com mentiras.
Para alguns pesquisadores, apesar da inclemência com que os militares trataram Joana Angélica, acabaram poupando as outras freiras, que, aos prantos, foram autorizadas pelo comandante da operação a serem transferidas para o Convento da Soledade, nas proximidades da região. Outros, acreditam que elas conseguiram fugir pelas portas do fundo do local.
O episódio ganhou repercussão por ter se tratado da morte de uma abadessa - cago máximo do convento - em uma sociedade hegemonicamente católica, onde a defesa das instituições religiosas sempre se fazia muito presente. O assassinato de uma mulher que vinha de uma família de ricos aristocratas da cidade, e que desde a sua juventude se dedicava a um templo religioso visto como uma referência para os soteropolitanos, gerou uma comoção popular.
A historiadora Geovanna Trevelin ainda contou sobre outra figura feminina que ficou estarrecida com o assassinato da Abadessa. "Sua morte gerou bastante revolta na região, afinal como poderia uma tropa agir com tanta violência contra uma senhora e ainda invadir a casa de Deus? Este acontecimento abalou também uma jovem chamada Urânia Vanério, que costumava produzir panfletos como forma de externalizar seu descontentamento em relação à invasão das tropas portuguesas.
Impulsionada por tamanho absurdo ocorrido no Convento da Lapa, elaborou sua indignação no panfleto 'Lamentos de uma Baiana' onde, em um trecho, ela pontua sua revolta pela morte de Joana Angélica", relatou.
Aos 13 anos, Urânia Vanério, conhecida como baianinha, foi capaz de transformar suas dores e sua indignação diante da morte de Joana Angélica, em poemas políticos. Através da janela de sua casa, a menina testemunhou as violências praticadas pelos lusitanos na cidade, e assim, escreveu seus versos, como uma maneira de demonstrar sua insatisfação contra aquele regime. A sua história, assim como também a da líder religiosa e de outras mulheres protagonistas do movimento de emancipação, é contada no podcast 'Mulheres na Independência', produzido pela Globoplay em 2022.
A vida de Joana também foi destaque na exposição Mulheres Pioneiras: Elas Fizeram História, realizada pela Câmara dos Deputados em 2016. No evento, a Madre foi apresentada como "um símbolo da resistência contra o autoritarismo português" já que, "em meio aos conflitos entre as milícias brasileiras pró-independência e o exército português, Joana, aos 60 anos, morreu ao receber um golpe de um soldado por resistir à invasão das tropas ao convento".
Segundo a Arquidiocese de São Salvador da Bahia, ela foi aceita aos 20 anos como noviça no Convento, onde tornou-se irmã consagrada no ano seguinte. Ainda segundo informações, ela era "estimada pelos moradores da capital baiana pelos conhecimentos que detinha", e foi designada abadessa por duas vezes.
Em 2001, a arquidiocese solicitou ''a inclusão da pesquisa de documentos comprobatórios'' do martírio dela ''para que se tornasse possível o processo canônico de beatificação'' da abadessa pela Igreja Católica. Se sua morte for entendida pelo Vaticano como um martírio em defesa da fé, não será necessária a comprovação de milagres.
A pesquisa, conduzida pela estudiosa Antônia da Silva Santos, iniciada em Salvador, consultou arquivos do Estado da Bahia, da Cúria Metropolitana e de conventos e mosteiros. Considerado insuficiente, o trabalho seguiu para outros acervos do território nacional. A partir de então, o dossiê passou a incluir documentos do arquivo do Mosteiro da Luz de São Paulo, do Museu Paulista da Universidade de São Paulo (USP), da Biblioteca Nacional, do Museu Histórico Nacional e do Arquivo Nacional, entre outras instituições do Brasil. Para constituir o processo de candidatura à beatificação, o grupo de pesquisadores também buscou materiais em Portugal, com consultas ao acervo da Universidade de Coimbra, à Biblioteca Nacional e ao Arquivo Nacional da Torre do Tombo, localizado em Lisboa.
Maria Quitéria, a mulher que com o seu saiote enfrentou um exército algoz
Boa parte do que se sabe sobre a mulher que conseguiu romper discursos machistas, ao se disfarçar de homem para livrar o seu país dos domínios portugueses, está presente em biografias escritas cem anos após a sua morte, como por exemplo, o livro de Pereira Reis Junior, de 1953, que conseguiu juntar relatos a partir de registros de jornais da época que descreviam os conflitos no território baiano. Além disso, muitas obras se baseiam nas páginas do livro Journal of a Voyage to Brazil, da escritora britânica Maria Graham, que conheceu Maria Quitéria em uma viagem que fez ao Brasil entre 1821 e 1823, período em que as elites oligárquicas usavam seus últimos instrumentos de poder para garantir a permanência do caráter violento, excludente e desigual.
Em entrevista, a vereadora de Salvador e fundadora da ONG ‘Tamo Juntas’, Laina Crisóstomo (PSOL), afirma que é muito importante a participação de mulheres como a Maria Quitéria em decisões nacionais, principalmente para o fortalecimento das lutas por um país mais justo. A parlamentar que faz parte de um cenário político que, é dominado por homens em sua maioria, diz que tem como inspiração, figuras femininas que contribuíram na independência da Bahia e que através de suas bravuras ‘’conseguiram enfrentar os mesmos padrões que continuam dizendo que os corpos de mulheres não podem ocupar certos espaços’’.
Laina, que participou das comemorações do 2 de julho deste ano, acredita que a trajetória da cadete rompeu mecanismos misóginos por ter conseguido consolidar seu legado para as gerações seguintes. Vale ressaltar que, mesmo diante de um período conturbado, no qual as tropas lusitanas intensificaram conflitos em torno do comando da província da Bahia, contra os nativos, ela não recuou e fez questão de confirmar seu nome no movimento emancipatório.
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A jovem de São José das Itapororocas, quando soube da guerra através de emissários brasileiros que chegaram às regiões do Recôncavo Baiano à procura de homens dispostos a participarem da luta armada, logo pediu a autorização do seu pai, o lavrador Gonçalo Alves de Almeida, para participar do exército. Porém, sem sucesso, o pedido foi recusado.
O patriarca era o dono da Fazenda Serra da Agulha, no atual município de Feira de Santana, interior do estado. Na propriedade, o homem criava cabeças de gado, plantava algodão e detinha 27 trabalhadores escravizados. A historiografia ainda relata que Maria Quitéria tinha apenas Gonçalo como o seu único responsável, pois sua mãe, Quitéria Maria de Jesus, morreu quando ela ainda era criança.
Uma das irmãs da jovem, conhecida como Josefa, não satisfeita com a decisão do pai de impedir o alistamento, realizou a vontade de Maria Quitéria. Através de sua cumplicidade, disponibilizou um dos fardamentos de seu companheiro para a moça comparecer ao Batalhão instalado na região, além disso, cortou os cabelos da irmã. Nascia, então, o "Soldado Medeiros".
A heroína que cresceu sendo instruída por madrastas e pouco afeita às tarefas de casa - condição imposta às mulheres daquele período -, começou a aprender várias técnicas de combate que eram ensinadas pelos militares brasileiros, e assim, se tornou a primeira mulher a integrar as Forças Armadas do país. Com suas particularidades, ocupou um espaço público que era então destinado a homens, em um local onde a presença de mulheres era proibida.
Pouco tempo depois do sumiço da filha, o proprietário da Fazenda Serra da Agulha foi até à cidade de Cachoeira, encontrar Maria Quitéria e informar ao major José Antônio Silva Castro de que o soldado Medeiros, na verdade, era uma mulher. Mesmo assim, o comandante permitiu que a soldada continuasse exercendo suas funções no Batalhão, já que possuía habilidades destacáveis com armas de fogo. Em março de 1823, um registro de Portaria do Governo Provisório da Vila de Cachoeira revela que o Major solicitou ao Inspetor dos Fardamentos, Montarias e Misteres do Exército que enviasse "saiotes, e uma espada" para que ela fosse devidamente fardada como mulher.
Maria Quitéria participou do primeiro combate em outubro daquele mesmo ano, na região da Pituba. Depois, no mês de fevereiro do ano seguinte, em Itapuã. Nesse período, ela foi promovida a 1º cadete. Em abril de 1823, ela comandou um grupo de mulheres civis que se uniram para lutar contra as tropas inimigas no litoral do Recôncavo.
Os conflitos armados no estado seguiram até o dia 2 de julho, quando os últimos soldados portugueses que ainda resistiam, decidiram abdicar do combate. Um mês após o fim da guerra, ela fez uma viagem até o Rio de Janeiro para ser recebida por D. Pedro 1º. O imperador condecorou a heroína com a insígnia de Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro, medalha criada para homenagear brasileiros ou estrangeiros que tenham lutado no movimento independentista.
Ainda segundo relatos biográficos, Maria Quitéria nunca teve o perdão do seu pai perante a sua decisão de participar das lutas pela emancipação. Além disso, os escritores que contam a sua história, apontam que ela teve uma filha, cujo paradeiro é desconhecido, e que durante seus últimos anos de vida enfrentou condições financeiras delicadas. Em 1853, ela faleceu em sua cidade natal.
No Centenário de sua morte, o governo Getúlio Vargas bancou a construção de uma estátua de bronze para homenagear a soldada. Com cerca de 1,60 metros de altura, a escultura fica localizada no Largo da Soledade, no centro histórico da capital baiana.
Para além do legado nas Forças Armadas, a sua trajetória de resistência também foi lembrada no período da ditadura militar, quando o Movimento Feminino pela Anistia se apropriou da imagem de Maria Quitéria como símbolo da liberdade. As mulheres que lutavam contra as forças antidemocráticas da época, criaram um boletim informativo, no qual a imagem da heroína foi estampada no documento. Também vale destacar, que na década de 1980, o nome da baiana foi utilizado pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB) para batizar uma editora criada na cidade de Salvador.
Atualmente, a Câmara de Vereadores da capital baiana, tem a Comenda Maria Quitéria, que é uma honraria concedida a mulheres que se destacam em ações que beneficiam o estado da Bahia. Segundo a vereadora Laina Crisóstomo, a homenagem é para destacar a importância de "mulheres revolucionárias à frente do seu tempo". A mais recente figura feminina a ser contemplada com a Comenda, foi a ialorixá Mãe Carmen, de 94 anos, que está há 21 anos comandando o Ilé Ìyá Omi Àṣẹ Ìyámase, o conhecido Terreiro do Gantois, fundado em 1849.
Maria Felipa, a itaparicana que incendiou caravelas lusitanas e fez arder o corpo do invasor
O apagamento da história de personagens negros no processo de construção da identidade deste país, não foi capaz de destruir a tradição oral dos moradores de Itaparica - local do nascimento da heroína - e de cidades do Recôncavo Baiano, que continuam a preservar o legado de Maria Felipa ao longo dos anos.
"Sempre fizeram questão de apagar nossas contribuições como povo preto. Sempre quiseram silenciar nossas histórias, nossos processos artísticos e nossa majestade. A branquitude só começou a criar estudos nacionais sobre nós, na escravidão, porém esse triste período não é nada, principalmente quando é comparado aos nossos passados de glória. E mesmo quando lutamos contra as violências impostas, não somos documentados. Os racistas só querem registrar os nossos sofrimentos, apenas", afirma a artística e educadora Joe Andrade, ao se referir aos processos de silenciamento e esquecimento.
Em trecho do livro Maria Felipa de Oliveira - heroína da Independência da Bahia, de Eny Kleyde Vasconcelos Farias, a história da mulher que não se permitiu ter seu destino acorrentado com as correntes da escravidão, é contada de forma descritiva, respeitando os saberes dos itaparicanos.
"Nasceu escrava, mas depois de liberta colocou a liberdade como maior tesouro de sua vida, moradora da Ilha de Itaparica, negra, alta, desde cedo aprendeu a trabalhar como marisqueira, pescadora, trabalhadora braçal que aprendeu na luta da capoeira a brincar e a se defender, que vestia saias rodadas, bata, torso e chinelas, foi líder de um grupo de mais de 40 mulheres e homens de classes e etnias diferentes, onde vigiava a praia dia e noite a fortificando com trincheiras para prevenir a chegada do exército inimigo, e organizava o envio de alimentos para o interior da Bahia (recôncavo), atuando na luta pela libertação da dominação portuguesa", detalha a Mestre em educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
A estudiosa ainda relata em sua obra que a descendente de sudaneses, nasceu em data incerta, na conhecida Rua da Gameleira, no atual município de Itaparica. Ela morou na região de Beribeira e, depois mudou-se para a Ponta das Baleias, para viver sua vida em um casarão chamado "Convento", que era um local que servia de moradia para trabalhadores da região. Era ali na Ilha de Itaparica, antiga Arraial da Ponta das Baleias, que iniciavam as primeiras lutas de resistência de Maria Felipa, após ataques lusitanos em seu território.
Naquela época, fazia quase três décadas que a Revolta dos Alfaiates ocorreu, um período de grandes transformações políticas para o estado. Além disso, os senhores de Engenho temiam o surgimento de um partido formado por negros, algo que poderia ser alimentado pelo os mesmos exemplos da Revolução do Haiti (1791-1804), na qual pessoas negras escravizadas se rebelaram e proclamaram a independência. O regime escravista considerava que algum “espírito mal intencionado” poderia transformar Salvador em uma "anarquia".
Para apavorar ainda mais os escravocratas, 280 escravos recusaram a indicação de um novo feitor, na cidade berço do nascimento de Maria Felipa. Reclamando de que não eram atendidos, o assassinaram a sangue frio, o que elevou as suspeitas sobre haver uma organização política que organizou a revolta. Como castigo, as tropas lusitanas mataram 32 negros.
A notícia do rastro de mortes deixado pelos portugueses contra participantes dos movimentos independentistas em Salvador, já chegava até os habitantes de Itaparica. A tradição oral ainda diz que, um impressor de identidade desconhecida, com muita esperteza e estratégia, apurou informações militares através do editor português Inácio José de Macedo, que era contrário à emancipação. Sendo assim, alertou às autoridades itaparicanas da iminência de uma investida militar contra a ilha.
Atenta aos sinais, a guerra já era uma realidade para Maria Felipa. Ela logo se alistou como voluntária na campanha pela Independência, que reunia indivíduos de etnias africanas e indígenas, além de portugueses simpáticos ao movimento.
A heroína ficou logo conhecida na região por liderar mulheres vigilantes conhecidas como “vedetas”, que ficavam às margens do litoral espionando a movimentação das caravelas portuguesas ao redor da ilha. Elas armavam trincheiras, captavam informações, cuidavam dos soldados brasileiros feridos e ajudavam na distribuição de alimentos.
No dia 7 de janeiro de 1823, Maria Felipa entrou em seu primeiro combate direto contra os invasores. Como forma de resistência, ela e suas companheiras usaram a planta cansação para agredir violentamente os soldados portugueses. A erva urticante que produz uma coceira intensa e que, com golpes vigorosamente desferidos contra o corpo, produz queimaduras dolorosas. Populares contam através de obras biográficas, que as mulheres antes do conflito, "dançaram na praia de forma insinuante" ao ponto de atraírem os inimigos, que ao se aproximarem, foram atacados com o molho da planta.
Outro momento muito conhecido entre os baianos, é o incêndio de 42 embarcações da frota de Madeira de Melo, o famoso general português que queria dominar a ilha e controlar a guerra na região da Baía de Todos os Santos. As biografias afirmam que Maria Felipa e suas vedetas entraram em um acampamento do exército lusitano, atearam fogo nas caravelas, e conseguiram promover baixas de comandados no exército inimigo.
Entre a história acadêmica e a história oral de um povo, Maria Felipa tornou-se uma liderança popular e um símbolo da participação feminina em um dos momentos mais importantes da história brasileira. Além disso, conseguiu engrandecer as lutas no estado da Bahia e dizer para as gerações seguintes que a resiliência e a força feminina sempre serão fundamentais para as conquistas de direitos.