Na última semana, uma policial militar negra, de 41 anos, foi acusada injustamente de furto em um estabelecimento comercial na Zona Oeste do Recife, capital pernambucana. Mesmo apresentando a nota fiscal dos produtos comprados, a vítima, que não foi identificada, precisou se esclarecer mais de uma vez e foi humilhada em público pelo segurança da loja. O caso foi levado a uma Delegacia de Polícia Civil e registrado como calúnia, apesar da suspeita de motivação racial.
O crime de calúnia consta no artigo 138 do Código Penal e prevê pena de detenção de seis meses a dois anos e multa para quem atribuir falsamente a alguém a responsabilidade por um determinado fato que é definido como crime. Ele também pode contemplar situações de racismo.
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Nenhuma das situações é um caso isolado: nem o racismo escancarado, nem o registro de situações possivelmente oriundas de racismo como ocorrências que ferem a honra, mas que não têm relação com a raça, etnia ou religião da vítima. No caso da policial acusada de furto, o crime de calúnia não foi atribuído incorretamente, mas faz parte de um padrão de atendimento a ocorrências por possível motivação racial.
Muitos aspectos contribuem para que o racismo permaneça sendo penalizado de forma mais amena na sociedade, desde a situação de uma representação judicial inexistente para a vítima, ao despreparo nas delegacias e tribunais do país. Considerando esses fatores, como a legislação brasileira lê o racismo na atualidade? Quem responde à pergunta é a advogada Patrícia Oliveira, entrevistada pelo LeiaJá.
— Patrícia Oliveira, do Projeto Oxé, uma iniciativa da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, com o apoio da articulação estadual (Anepe) e do Gabinete Assessoria Jurídica Organizações Populares (Gajop)
LJ: Afinal, o racismo é crime previsto na legislação do Brasil?
Patrícia: O racismo é crime inafiançável e imprescritível. Isso tem que ser "negritado" em todos os cantos do Brasil, porque a prática do racismo está sujeita à pena de reclusão nos termos da lei.
LJ: O que muda com a lei que equipara injúria racial ao racismo, sancionada pelo presidente Lula em janeiro deste ano?
Patrícia: Com a nova lei que altera a tipificação do crime de injúria racial, a gente precisa frisar que, ao equiparar injúria racial a racismo, ainda se tem crimes distintos. A injúria racial atinge a subjetividade do indivíduo, já o racismo atinge uma coletividade. Por exemplo, é crime de injúria racial quando a honra específica de uma pessoa é afetada em razão da sua cor, etnia ou religião. Já o crime de racismo ocorre quando o agressor atinge um grupo ou uma coletividade de pessoas, discriminando um grupo ou raça de forma geral.
Com a sanção da nova lei (Lei do Crime Racial, 14.532/2023), se acrescenta alguns pontos à Lei 7.716/1989, que é justamente a Lei do Racismo e que continua em vigor mesmo com essas mudanças. A maior novidade é que a injúria racial passa a ser equiparada ao crime de racismo e aí sofre um aumento de pena. A pena de reclusão é de dois a cinco anos e multa, assim como nos casos de racismo.
LJ: Por que muitos casos de racismo são tipificados como injúria?
Patrícia: Vivemos em um país que é estruturalmente racista, porque foi construído sobre a opressão de uma população. Muitos casos em que a gente verifica todos os indícios de que estamos diante de uma prática de racismo, mas tipificam de outra forma, a depender de quem esteja passando por essa situação e do aparato que ela tem para fazer a instalação do inquérito e investigação. Mesmo com fortes indícios e se concluindo o inquérito na perspectiva de que está acontecendo uma situação de racismo, no Judiciário, ao ser analisado por determinado julgador, se conclui que estamos dentro de uma injúria racial.
Até porque, o crime de injúria racial, antes da sanção em janeiro de 2023, tinha uma pena menor, e poderia dar a possibilidade de ofertar ao Ministério Público uma transação penal. Era muito mais interessante que se fizesse isso. Mas por que isso acontece na prática, no Estado, no Judiciário que deveria concretizar as ações com base no acervo legislativo? Porque as pessoas ocupando os espaços de justiça são pessoas sem vivência, privilegiadas, que não furaram sua bolha e que nunca passaram por uma situação de racismo. São pessoas despreparadas para julgar casos de racismo e que nunca poderão sentir na pele o que é você sofrer indiferença, ser ignorado, invisibilizado em razão da sua cor. O Estado, que detém o poder de atuar como agente repressivo do racismo e de penalizar os racistas, não o faz, mas é conivente.
LJ: A tipificação do caso da policial militar, como calúnia, é comum?
Patrícia: Isso é corriqueiro no dia a dia do operador do direito e também da pessoa que não tem condições de ter um advogado para acompanhá-la à delegacia e gerar um boletim de ocorrência. Esse grupo se depara com agentes do Estado despreparados para receber e efetivar a ocorrência. Na tipificação é comum não ser registrada a definição correta do crime ali. É aí onde entra a realidade do que a gente [pessoas pretas] vive. A mulher acusada é negra. O fato de você não ter a cor que abona a possibilidade de ser alguém que pratique algo ilícito já diz muito. Nossos corpos estão sempre à disposição da sociedade para dizer o que somos e deixamos de ser.
Como negra, sou colocada na caixinha de uma possível criminosa, de alguém que não é merecedor de estar em determinado espaço ou que possa ser médico ou estar compondo uma mesa de justiça. Isso de não conseguir registrar o crime de racismo é comum e desafiador para nós advogados e precisamos que haja um esforço coletivo dos governantes para que vítimas de racismo possam ser acolhidas em delegacias e tribunais, que nos olham e julgam já como réus.
LJ: Somando à pergunta anterior, qual a diferença entre injúria e difamação?
Patrícia: A diferença entre injúria e difamação está no tipo de ofensa feita à honra da vítima. A injúria (artigo 140) ofende a honra subjetiva e a moral da vítima, por exemplo, chamar alguém de ladrão. Já a difamação (artigo 139) é imputar fatos ofensivos à conduta da vítima, para prejudicar sua imagem pública (reputação). Por exemplo, espalhar, publicamente, que determinada pessoa não paga as contas em dia e é devedora.
LJ: Em que essas lacunas atrapalham a luta no combate ao racismo no país? O que falta na nossa lei?
Patrícia: Temos uma vasta legislação, um acervo de legislações, mas na prática, elas não são efetivadas, e isso passa por vários vieses. A partir do momento em que você é vitimado com um ato racista e procura uma delegacia para poder registrar e instaurar um inquérito, você enfrenta desafios porque as pessoas que estão ali, representando o Estado, para lhe acolher humanamente, ter empatia com a situação e, de fato, aplicar a lei pertinente, muitas vezes lhe revitimiza e o faz sentir novamente toda aquela dor.
É revitimizar quando se diz que a denúncia não vai dar certo e se estimula a vítima a não registrar, quando não se tipifica corretamente o crime que a vítima buscou a delegacia para registrar. Mesmo diante da legislação que nós temos, se ela de fato fosse aplicada como deveria, a gente poderia estar fazendo a diferença. Infelizmente, a vítima de racismo sofre duplamente, pois é vitimada no crime e uma segunda vez com a morosidade do Judiciário e a falta de empatia. Temos a necessidade de qualificar pessoas e de delegacias especializadas no combate ao racismo.