Era véspera de uma prova importante. Para muitos jovens, contudo, bem mais do que uma grande avaliação educacional, o exame representava a ponte mais firme no caminho entre a escola e a universidade. Todos sonhavam com as notas que os credenciariam ao ensino superior, porém, tão grande quanto os sonhos era a concorrência. Requisitado desde o ensino fundamental para ajudar os amigos de classe com os “assuntos difíceis”, Celso Lucas Gomes da Silva carregou, até o ensino médio, o costume de compartilhar o que sabia com os amigos que apresentavam dúvidas. E nos dias que antecediam a tal prova - o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) -, o garoto não deixou de lado os companheiros de sala: prontificou-se a estudar junto com eles, afinal, ensinar era o seu dom, mérito que ostenta com orgulho.
Biologia e química eram as especialidades de Celso. Porém, suas notas nas demais disciplinas também os honraram como um estudante dedicado, apaixonado pelos livros e admirador dos seus mestres. Os professores os inspiravam. Eram, para Celso, motivos de orgulho. Ele preservou o que gostava de fazer, de forma espontânea, movido pela educação. Dias antes do Enem, em 2016, não hesitou em ensinar a um colega. “Um amigo tinha dificuldades em química, praticamente não teve a base da disciplina e queria cursar a graduação de bioquímica. Ou seja, Natureza tinha um peso grande. Por isso, revisei durante um mês todo o conteúdo com ele. Quando ele foi fazer o Enem, conseguiu acertar mais questões do que eu. Fiquei muito feliz, me marcou bastante, essa história me deu a certeza de que eu deveria ensinar”, relembra Celso com largo sorriso.
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A relação de Celso com a educação reservou novos capítulos para o jovem. E nas suas veias, corre o sangue de uma educadora. Professora, a mãe do rapaz era a responsável por uma sala de aula inclusiva, em uma escola da rede municipal de ensino de Olinda, na Região Metropolitana do Recife. Quando sua mãe enfrentou um problema de saúde, o jovem recebeu a missão de continuar as aulas e conhecer de perto a rotina de alunos diagnosticados com autismo, dislexia e Síndrome de Down. Durante seis meses, o aprendizado foi mútuo; Celso compreendeu o poder inclusivo da educação e reforçou seu desejo de compartilhar conhecimento. Ele sabia que deveria tornar-se professor. “Percebi que dar aulas não era algo irritante, sabe? Os alunos me perguntavam e eu tinha prazer em repetir até eles compreenderem. Enquanto eu dava aula, me sentia incrível. Me sentia um agente modificador que estava contribuindo para as pessoas”, descreve Celso.
Momento importante, muitas vezes que determina o futuro profissional dos jovens brasileiros, o fim do ensino médio para Celso foi marcado por um embate. Apesar do dom de ensinar e do amor pelo trabalho de professor, comentários negativos a respeito da carreira docente, oriundos em várias ocasiões de parentes próximos, criaram barreiras para ele escolher de vez a licenciatura como formação. “Ouvia: ‘tão estudioso para ser professor’”, recorda. As críticas, no entanto, não surtiram efeito. Inspirado por uma professora de biologia, ele resistiu, sustentou a vontade de ensinar e ser, como o próprio Celso classifica, um agente transformador da sociedade. “Tinha uma professora no ensino médio chamada Patrícia que mostrou como dar aula a partir de práticas pedagógicas inovadoras. Fazia muitos trabalhos interativos com os alunos, todo semestre ela dava os assuntos de forma lúdica. Ela provava que ensino não pode ser engessado, apenas no quadro”, conta.
Celso foi aprovado no Sistema de Seleção Unificada (Sisu) em 2016. No ano seguinte, iniciou sua vida educacional no ensino superior, na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Hoje, aos 19 anos, o jovem natural de um bairro periférico da cidade de Olinda e que sempre estudou em escolas públicas, faz o terceiro período de licenciatura em biologia. Continua fortalecendo seu desejo de chegar em uma sala de aula e disseminar educação entre seus alunos, com o discurso de que a figura do professor, apesar de tantos problemas, segue sendo fundamental para a sociedade brasileira. Ao recordar da aprovação no Sisu, que teoricamente deveria ser motivo de comemoração para toda a família e amigos, Celso revela mais uma crítica que ouviu de um parente: “Se você tivesse estudado mais teria passado em um curso melhor”. “Ele (o parente) sempre soube que eu queria ser professor, mas não aceitava, justamente pelo estereótipo de que professor não ganha bem e que não é valorizado”, relata Celso.
Celso no Campus Recife da UFRPE - Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens
“Eu sei que ser professor no Brasil é terrível quando falamos das condições horríveis de trabalho, de desvalorização, de baixos salários. O Brasil ainda precariza muito o professor como profissional, enquanto em outros países é um trabalho muito mais valorizado. Até existem professores que não indicam aos seus próprios alunos de ensino médio a carreira de licenciatura, por causa de todos esses problemas. Mas, quando eu fui acompanhando as fases escolares, vi que gostava muito de ensinar, de ajudar os amigos. Sempre tive vontade de ajudar a sociedade, de fazer o bem para todo mundo, desde o fundamental até o ensino médio. E sempre reparei que professor tinha muito disso, de ajudar os estudantes”, finaliza o jovem Celso.
Agora, nos corredores da universidade, o jovem pernambucano busca retribuir toda inspiração que o fez escolher a docência. Celso faz do ensino superior uma valiosa oportunidade de enriquecer sua formação educacional e principalmente de fortalecer seu desejo de compartilhar saberes, não de maneira autoritária, mas disposto a receber de seus futuros alunos conhecimentos e vivências sociais. Para Celso, hoje a relação entre professor e aluno é uma troca. Segundo ele, não há mais espaço para que o docente seja o único dono da verdade. Celso diz, contudo, que apesar dessa troca, a figura do professor ainda precisa ser a de um mestre que contribuirá para todo o cidadão que almeja chegar à universidade e tornar-se um profissional qualificado. Por isso, o jovem repete, incansavelmente, que a educação carece de valorização, tanto do poder público quanto da própria população.
Celso é exceção. O desejo de tornar-se professor é cada vez mais escasso entre os jovens brasileiros. Diante de um cenário desmotivador, em que baixos salários, cargas excessivas de trabalho, violência nas salas de aula e falta de investimentos públicos assola a educação brasileira, poucos jovens almejam ingressar na carreira docente. Um recorte do Ministério da Educação (MEC) aponta que apenas 2% dos estudantes que saem do ensino médio escolhem a docência.
Outro levantamento também expressa como a carreira de professor sofre com desistências. De acordo com um estudo do Movimento Todos pela Educação, que teve como base dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), a cada 100 jovens que ingressam em licenciaturas ou cursos de pedagogia, somente 51 concluem as graduações. Além disso, o levantamento identificou que entre esses alunos que terminam os cursos, apenas 27 demonstram interesse em seguir na profissão de educador.
Nada promissores, os números sobre os cursos de licenciatura preocupam especialistas em educação e escancaram a necessidade de investimentos na carreira docente por parte do poder público. Enquanto não houver valorização da profissão, principalmente no quesito salarial, o quadro tenderá a ser crítico. Nos últimos anos, os índices decadentes reiteram que estudantes brasileiros estão evitando a formação docente na hora de se inscrever para as seleções de universidades públicas e privadas. De acordo com uma preocupante pesquisa do Sindicato das Mantenedoras de Ensino Superior (Semesp), entre 2010 e 2016, a quantidade de alunos que entraram em cursos de licenciatura caiu 10%. O levantamento ainda aponta que só 39,5% dos formados em licenciatura continuaram trabalhando na área.
Ainda sobre a queda na procura por licenciaturas, o MEC detalhou, a pedido do LeiaJa.com, os números das últimas edições de inscrições em formações de professor por meio do Sistema de Seleção Unificada (Sisu). Assim como em outros levantamentos, o resultado não é positivo. Segundo balanço do Ministério da Educação, entre as edições 2015 e 2018 do Sisu, houve uma queda de quase 27% no quantitativo de inscritos em licenciaturas.
Como pesquisas apontam, começar um curso superior para ser professor não implica que o universitário continuará na graduação até o fim. Em outro levantamento a partir de um estudo do Inep realizado em 2015, o Movimento Todos pela Educação concluiu que nas licenciaturas, entre os que concluem as formações, um grande percentual de formados desiste da docência mesmo com o diploma na mão. Em biologia, química e física, por exemplo, os percentuais de desistência são 49,9%, 54,5% e 60%, respectivamente.
Apesar das dores da formação e dos empecilhos do mercado de trabalho docente, Berg Figueiredo, 30 anos, persistiu. Natural de Olinda, ele escolheu a carreira de professor, mas sente os efeitos de uma profissão que para render uma remuneração digna, exige uma carga horária extenuante. Berg prestou vestibular em 2006 e, no ano seguinte, entrou na universidade. “Rolou a química com a química”, brinca.
Já são dez anos na carreira de professor. Berg relembra que dos 40 alunos que ingressaram na sua turma de licenciatura, na UFRPE, apenas quatro concluíram a graduação. “Muitos desistiram principalmente por acharem que a profissão não traria dinheiro e muito menos valorização. Trocaram de curso! O próprio povo brasileiro ainda tem essa imagem ruim do professor, porque ainda existem inúmeros problemas que afetam a profissão”, conta. “E das pessoas que se formaram, além de mim, praticamente ninguém seguiu na profissão”, complementa.
De acordo com Berg, as experiências em sala de aula ainda no período da graduação o fizeram continuar na carreira. Durante seis meses, participou de um projeto pré-vestibular e ajudou dezenas de alunos na preparação rumo à aprovação para o ensino superior. “Foi um contato marcante. Seis alunos foram aprovados para o ensino superior e percebi que tive minha contribuição na realização desse sonho. Revivi o momento da minha aprovação no vestibular, que é um sentimento mágico”, recorda o professor de química.
Durante os mais de dez anos como professor, Berg se dividiu em dar aulas em escolas privadas, pré-vestibulares e no próprio curso preparatório em que é sócio. “A motivação para continuar vem do meu amor pela educação. Amo estar em uma sala de aula. Quando um professor entra em uma turma, ele se depara com sonhos, histórias de vidas e uma meta em comum: chegar à universidade. Hoje, considero que o professor é um formador de opinião e principalmente é um realizador de sonhos”, descreve Berg. Ele trabalha em todos os turnos de segunda até sexta-feira, em, pelo menos, quatro cidades da Região Metropolitana do Recife e em municípios do interior de Pernambuco. Nos finais de semana, ainda se dedica a aulas-extras, eventos pedagógicos, entre outras atividades. “Não é fácil. A gente cansa. Não me sinto frustrado como professor, mas ainda falta muita coisa para valorizarmos a profissão. Falta respeito ao nosso trabalho”, desabafa o professor de química.
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Diogo Xavier, 29 anos, também seguiu a profissão. Morador de Paulista, na Região Metropolitana do Recife, o docente da área de letras tem cerca dez anos como educador e reconhece os problemas enfrentados na carreira. Na sua rotina, longas jornadas de trabalho, mas há também a certeza de que a educação é uma ferramenta transformadora. De acordo com Xavier, ajudar seus mais de 600 alunos de ensino médio a chegar à universidade faz com que ele supere todos os empecilhos da profissão.
“Hoje a gente fica muito feliz quando há o reconhecimento do aluno. Certo dia um ex-estudante me parou e agradeceu pelas aulas que teve. Hoje esse aluno comemora a aprovação”, comenta o professor de letras. Sobre os desafios e problemas da profissão, Diogo detalha, no áudio a seguir, sua opinião:
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Na visão dos especialistas, um cenário que pede socorro
Para o diretor executivo do Sindicato das Mantenedoras de Ensino Superior, Rodrigo Capelato, a baixa procura pela profissão de professor entre os jovens brasileiros se justifica além da questão salarial. Capelato não é nada otimista diante das pesquisas sobre a educação e traça um panorama que, na prática, não deve apresentar melhoras em um curto prazo.
“O grande problema é que a profissão é extremamente desvalorizada na sociedade atual, não só por uma questão salarial, mas além disso, somado a esse salário baixo, você tem uma precariedade muito forte nas condições de trabalho. Uma pesquisa da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) mostrou que o Brasil está no topo do ranking da violência nas escolas”, argumenta o diretor executivo.
“Segundo a pesquisa da OCDE, 12,5% dos nossos professores disseram que foram agredidos ou intimidados pelo menos uma vez por semana na sala de aula, enquanto que a média internacional foi de 3,4%. A mesma pesquisa colocou que um em cada dez professores no Brasil acredita que a profissão é valorizada, ao mesmo tempo em que a média internacional é de três em cada dez professores. O levantamento foi feito com mais de 100 mil professores e diretores escolares”, acrescenta Capelato.
O diretor executivo do Semesp também explica a baixa procura pelas licenciaturas e a desvalorização da docência a partir da falta de condições adequadas de trabalho. “Você tem uma quantidade insuficiente de professores. Uma situação complicadíssima, porque é preciso que o próprio professor reponha as aulas ou porque os alunos estão totalmente dispersos. Faltam inspetores, auxiliares e apoio para esses professores. Os espaços físicos estão sucateados nas escolas públicas e ainda há insegurança grande no entorno das escolas. O docente acaba sendo o centro de todos esses problemas”, diz o diretor.
Segundo Rodrigo Capelato, a falta de investimentos adequados na educação brasileira também é um sério problema. Reforçando um cenário futuro nada promissor para os professores, o diretor também critica veemente a descontinuidade dos projetos educacionais. “Na pesquisa ‘Um novo olhar sobre a educação’, da OCDE, o investimento por aluno da educação básica no Brasil é de 3.800 dólares por ano, enquanto que a média dos 35 países que participaram do estudo foi de 10.500 dólares por aluno. Você não vê uma política de longo prazo para a educação pública, visando 30, 50 anos. Tive a oportunidade de visitar a Coreia do Sul e lá eles pensam um planejamento anos a frente. Isso nada mais é do que uma política de estado, que não importa quem está governando. É importante entendermos que o governo quando começa a investir em educação não vai colher os frutos nesse mesmo governo”, opina Capelato.
Ainda de acordo com diretor do Semesp, outra questão preocupante é a própria formação dos professores. “Hoje, o processo de educação está vivendo uma inovação muito forte, seja na sua concepção ou nas suas metodologias de ensino. No caso do Brasil, não há essa percepção na formação dos professores, a gente continua com os mesmos currículos, as mesmas formações de décadas atrás. Os programas de formação de professores também estão muito defasados”, acredita o diretor.
Em sua projeção, Rodrigo Capelato prevê um contexto extremamente preocupante. “Infelizmente, os dados não são animadores. As sondagens que a gente tem feito recentemente são de queda na procura por licenciaturas nas universidades públicas e privadas em 2017 e 2018. A impressão que tenho é que só vai mudar quando a gente entrar em um colapso, quando não teremos mais professor de física, matemática, história... Só assim a profissão vai começar a ter uma valorização, porque vai custar caro você contratar professor. Não vejo, a curto prazo, nenhuma mudança nesse cenário”, finaliza.
A gerente de projetos do Movimento Todos Pela Educação, Caroline Tavares, também acredita que em um determinando momento haverá falta de professores. Ela ressalta que esse colapso deverá acontecer com disciplinas específicas da área de Natureza, como química, física e biologia. “Já existem estudos que dizem que em dez anos vamos sentir essa falta”, comenta. Sobre a ideia de que a carreira docente é desvalorizada, Caroline acredita que uma cultura social, instaurada no Brasil, explica essa percepção, mesmo existindo exemplos de professores com bons salários, como os educadores donos de cursos preparatórios.
“Tem um problema cultural, que a gente precisa enfrentar quando pensamos em valorização profissional do professor. Ele ainda é visto como coitadinho, que ganha salários ruins. Em alguns casos isso ainda é verdade. Há um senso comum que ser professor você vai se dedicar a uma carreira onde você vai ser mal valorizado, mal remunerado e com péssimas condições de trabalho”, explica a gerente.
Caroline argumenta, contudo, que o Brasil tem um número significativo de professores. “Existem muitos professores no Brasil, é muito fácil você conhecer alguém na sua família que seja professor. Durante muitos anos, essa pessoa foi mal remunerada e, além disso, as condições de trabalho nas escolas ainda não são as melhores. Essa imagem é que propaga nacionalmente. Professor deveria estar recebendo bem mais do que ele recebe”, pontua. “Nos últimos estudos, o Brasil investe menos em educação na comparação com os países que são considerados referência em educação”, acrescenta, ao justificar a desvalorização da categoria.
No ano passado, Caroline iniciou um projeto no Todos Pela Educação que busca despertar nos jovens brasileiros o desejo de seguir a carreira de professor. Um dos pontos principais é fomentar a valorização da profissão e reunir estudantes altamente qualificados, tais como os que apresentam desempenhos elevados no Enem. Entre os pilares do projeto estão atratividade, ações de valorização e justamente a busca por jovens capacitados. “Queremos que os professores sejam bem mais capacitados. É preciso mexer na carreia, oferecer melhores salários e melhores condições de trabalho. O jovem brasileiro precisa entender que o ser professor requer enfrentar desafios. É, de fato, uma profissão muito desafiadora, porque você é o responsável pelo aprendizado e pelo futuro das gerações”, reforça a gerente.
De acordo com a doutora em educação e coordenadora da Pró-Reitoria para Assuntos Acadêmicos (Proacad) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Eleta Freire, a desvalorização dos professores no Brasil é clara. Uma das críticas dela refere-se à problemática da ausência de formação continuada, seja ainda no período da graduação em licenciatura ou após essa etapa. A doutora alerta a necessidade urgente dos docentes investirem em qualificação contínua, algo que pode fomentar melhores salários e melhores condições de ensino.
“Acho que a gente pode fazer uma análise ampliada. A própria profissão docente precisa ser mais valorizada. Não só com formação inicial, mas formação continuada. Precisaria de um salário que não te obrigasse trabalhar dois, três horários. Temos professores da educação básica que para garantir uma renda que propicie uma vida não tão precária, ele vai ter que trabalhar manhã, tarde e noite. É uma carga de trabalho muito grande e na relação carga versus salário, não é das condições mais atrativas”, analisa a doutora em educação.
Eleta Freire indica ações que podem ajudar a valorizar a carreira de professor - Foto: Chico Peixoto/LeiaJáImagens
Para ela, existe um aspecto fundamental que precisa ser carregado por todos os professores: a identidade docente. Segundo a doutora, essa característica não é tida apenas como um dom; é também um fator que se adquire durante a graduação e formação continuada, desembocando no que se entende por profissionalismo docente. “A identidade docente ajuda muito. Se constrói no processo de formação inicial e continuada. Para além dos bancos da escola, está no olhar sobre a docência. Formação em termos de investimento em mim. É uma profissionalidade que se constrói no exercício da profissão, que vai construindo o gosto pela docência”, opina Eleta.
A doutora salienta ainda que as formações superiores para professor precisam de uma reformulação. Assim como as características sociais mudaram ao longo do tempo, a maneira como se ensina nas escolas também precisa acompanhar a forma como os novos costumes sociais se intensificam. “A formação precisa ser dinâmica. A sociedade não parou há um século, as mudanças são rápidas, as crianças de hoje não são as crianças de anos atrás. Se como docente eu não for me atualizando, se como formação os cursos não vão se atualizando, a tendência é que o curso forme para uma sociedade que não existe mais. Eles precisam estar se reinventando a todo tempo”, alerta. No áudio a seguir, a doutora em educação ainda traz uma reflexão sobre o histórico das licenciaturas:
Para Eleta, hoje os professores enfrentam sérios desafios, mas ela acredita que os principais são as barreiras que dificultam a formação continuada e as mudanças sociais que impactam a rotina dos estudantes. “Como desafio é a própria dinâmica social que a gente vive hoje. O estudante de hoje não é o estudante de 20 anos atrás. Ele pensava muito antes de enfrentar o professor. Ele tem elementos negativos quando há violência física e verbal, e isso tem desestimulado muito gente. Muitos professores ficam sem ação e de mãos atadas. Mas tem um enfrentamento que eu acho que é bom, porque há 60 anos o aluno era totalmente dependente do que o professor transmitia. Hoje tem um professor que não pode se imaginar como alguém que sabe tudo. Ele não pode imaginar o aluno como alguém que não sabe nada. O estudante está na sala e ao mesmo tempo está conectado com o mundo”, argumenta.
“A formação tem que ser uma constante, continuada e para sempre. É um desafio, porque se você pensar um professor que precisa trabalhar três horários, em que momento ele pesquisa, planeja, ele estuda? É o que acontece com a maioria. Que professor pode trabalhar um horário só? É uma minoria”, finaliza a doutora em educação.
O discurso da representação e o argumento governamental
O presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Heleno Araújo, não economiza críticas contra a maneira como o professor é tratado no país. Para o representante da categoria, um conjunto de fatores explica o pouco interesse dos jovens brasileiros pela profissão e os problemas que prejudicam as condições de trabalho dos educadores.
“São diversas ações que motivam essa falta de busca pela profissão. A violência no espaço escolar, o desrespeito com a carreira do professor. Nós trabalhamos com alguns indicadores de valorização profissional e todos estão afetados e prejudicam a procura da juventude. Falta política de formação continuada e o Estado deixa a cada profissional a responsabilidade, não investe em qualificações. As condições de trabalho também se tornam um problema extremamente sério, tem escola que você chega e não consegue ter um ambiente do trabalho”, frisa Araújo, além de reforçar o problema da questão salarial como um fator desmotivador entre os jovens.
De acordo com o presidente da CNTE, a administração das escolas públicas também afeta os profissionais da educação. Ele argumenta que muitos gestores são escolhidos por motivação política e não conhecimento na área pedagógica. “A gestão que se diz democrática nos afeta. Você tem uma lei que diz que tem uma gestão democrática e uma participação social na gestão das escolas, e o que você tem são gestores por indicação política. Ninguém quer passar por uma situação dessa, além de salários baixos, ainda passa por situações humilhantes”, opina o presidente. O representante da categoria ainda expõe sua visão social sobre a desvalorização do professor. “É uma questão social muito forte, vinculada com a concentração de renda brutal que existe no Brasil, de terra e dos meios de comunicação. Essa parcela rica não tem interesse na distribuição de renda no país. São gargalos que desprestigiam uma profissão tão importante, já que a educação não é valorizada e isso, consequentemente, afeta o professor”.
O presidente da CNTE acredita, contudo, que a população também precisa agir em prol dos educadores. “É preciso mobilização social. Todo mundo tem a clareza de que a educação é essencial. Este ano é de eleição, a gente precisa ouvir as propostas. Falta ter vergonha na cara de quem é eleito para prometer e cumprir. A educação de qualidade é um direito que está sendo negado à população. A mobilização é essencial para a gente ter acesso à educação e valorização dos trabalhadores de educação”, crava.
O LeiaJa.com procurou uma fonte do Ministério da Educação que pudesse responder acerca dos principais problemas que afetam os professores brasileiros. O órgão, por meio da sua assessoria de imprensa, preferiu não se posicionar. Por outro lado, a pasta indicou apenas a possibilidade de apuração junto à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), que se resumiu em abordar os programas governamentais de formação docente. Confira a nota que detalha esses programas:
Com a finalidade de contribuir para o aperfeiçoamento da formação de professores nos cursos de licenciatura, a Capes lançou em março do corrente exercício os editais do Programa de Residência Pedagógica e do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid). Tais programas têm como premissas básicas o entendimento de que a formação de professores nos cursos de licenciatura deve assegurar aos seus egressos, habilidades e competências que lhes permitam realizar um ensino de qualidade nas escolas de educação básica. Sabe-se que essas habilidades e competências estão relacionadas, entre outros aspectos, ao conhecimento do conteúdo e de práticas pedagógicas em sala de aula e à preparação psicológica para atuação e abordagem das diferentes situações pedagógicas e relações do cotidiano escolar.
No entanto, observa-se que o distanciamento do discente de licenciatura, e até mesmo de seus formadores, do ambiente escolar afeta a qualidade da formação de professores no País. Essa é uma realidade que precisa ser mudada com urgência. O Programa de Residência Pedagógica e o Pibid são ações da Política Nacional de Formação de Formação de Professores para induzir e acelerar tal mudança.
O Programa de Residência Pedagógica tem por objetivo induzir o aperfeiçoamento do estágio curricular supervisionado nos cursos de licenciatura, por meio de imersão do licenciando que esteja na segunda metade do curso, numa escola de educação básica. A imersão deve contemplar, entre outras ações, regência de sala aula e intervenção pedagógica, acompanhada por um professor da escola com experiência na área de ensino do licenciando e orientação do docente da IES.
O Pibid, por sua vez, busca promover a iniciação do licenciando no ambiente escolar na primeira metade do curso, visando estimular, já no início do seu percurso formativo, a observação e a reflexão sobre a prática profissional docente no cotidiano das escolas públicas de educação básica e no contexto em que elas estão inseridas. No Pibid, os licenciandos também serão acompanhados por um professor da escola e por um docente da IES.
Ambos programas serão desenvolvidos em regime de colaboração com as redes de ensino. Assim, as IES devem organizar seus projetos institucionais em estreita articulação com a proposta pedagógica das redes de ensino que sediarão os subprojetos.
As IES serão selecionadas por meio de edital, que tem entre seus objetivos, ampliar o número de discentes de licenciatura atendidos; aprimorar os mecanismos de indução, incluindo critérios com vista à institucionalização das iniciativas de melhoria da formação prática dos licenciandos, valorização de seus formadores, a interiorização da oferta de bolsas; e, uma articulação mais efetiva com as redes de ensino.
Ainda no âmbito da Política Nacional de Formação de Professores, o Edital de articulação de ofertas do Sistema Universidade Aberta do Brasil (UAB) é uma das ações do Ministério da Educação para oferecer aos professores que atuam fora de suas áreas de formação, conforme Índice de Formação Docente (Censo da Educação Básica 2017), oportunidade de obterem a formação adequada, e consequentemente, melhorar sua ação docente.
O Sistema UAB completou, em 2016, 10 anos de existência. O programa, instituído pelo Decreto n.º 5.800, de 8 de junho de 2006, visa à expansão e à interiorização da oferta de cursos e programas de educação superior no país por meio da modalidade EaD (uso de tecnologias de comunicação e Informação no processo de ensino-aprendizagem) com intuito de democratizar o acesso a população com difícil acesso a este nível de ensino (Art. 1º). Tal expansão se dá articulados a dois objetivos estratégicos para o estado brasileiro: minimizar o déficit de docentes, ampliando o quantitativo de profissionais docentes com formação em nível superior e ampliar a política de formação em nível de pós-graduação de docente que atuam na rede básica de ensino, oportunizando principalmente para municípios e estados que carecem de ações que ofereçam cursos de pós-graduação aos professores de sua rede de ensino.
As vagas que serão ofertadas nos programas – com início previsto para agosto deste ano - Residência Pedagógica, Pibid e UAD são apresentadas a seguir:
Pibid: 45 mil vagas
Residência Pedagógica: 45 mil vagas
UAB: 250 mil vagas
No caso dos programas Pibid e Residência Pedagógica o quantitativo de vagas corresponde ao número de bolsas que serão ofertadas aos licenciandos. Somando-se os dois editais, alcança-se o montante de 90 mil bolsas, número superior ao que era ofertado pelo Pibid implementado com o Edital 2013.
Três décadas de sala de aula
O professor André Luiz Vitorino de Souza, 49, vibra diante dos estudantes. Reitera o discurso em tom de conselho de que uma aula é como um prato de comida para quem sofre de fome. É uma maneira que ele encontrou de ilustrar para seus alunos a importância que o trabalho de um educador tem. No currículo, André coleciona passagens pelos principais colégios privados de Pernambuco, além de integrar o corpo docente das escolas estaduais.
André ama a sala de aula. Revela que o coração acelera a cada oportunidade de lecionar a biologia diante do alunato dos dez colégios onde ele trabalha. Segundo o educador, a vontade de se tornar professor se deu pela necessidade do Brasil melhorar a educação nacional, que para André é desvalorizada e desprezada pelos governantes. “Qual é a do país da gente? É não ter uma grande educação, porque se a gente tiver uma educação de qualidade, vamos mudar de categoria, iríamos sair de um país de terceiro mundo e brigaríamos com os países que tem saúde, educação de qualidade”, sustenta o docente, destacando que o problema é ainda mais sério nas escolas públicas.
De acordo com o professor, mesmo com todas as dificuldades que afetam a profissão, ele continua a carreira pelo propósito de oferecer aos estudantes uma oportunidade de ascensão social e profissional por meio da educação. André também frisa a importância de proporcionar aos alunos a chance de chegar ao ensino superior. “A universidade abre as portas e nos traz uma nova forma de pensar o mundo. Chegar à faculdade é o sonho da maioria dos jovens e o professor é um elo para a realização desse sonho”, comenta.
O saudosismo de André ao se referir à profissão de professor não esconde, porém, sua indignação pela forma como a carreira docente é tratada no Brasil. Ele revela que sua maior frustração é a maneira como a figura do professor é vista no país; André arrisca, inclusive, que a profissão pode acabar. “Eu diria que é uma profissão em extinção. Você vê que os cursos de licenciatura a cada semestre têm menos procura, por causa da falta de reconhecimento financeiro. O professor forma todas as outras profissões e, entre elas, somos os que ganhamos menos. A única mágoa que eu tenho é que ganho menos do que eu merecia ganhar. Mas como amo muito o que faço e tenho muito tempo de estrada, acabo amenizando essa questão financeira, mas para um professor que está começando, a situação é difícil e atrapalha a continuação na carreira”, desabafa André Luiz.
“O que me motiva muito é colocar o aluno na universidade. É uma sensação indescritível, você vê um menino ou uma menina que saiu do zero chegando no ensino superior. É como se a gente, professor, estivesse passando no vestibular também. Quando chegamos na universidade, as portas se abrem, não só as do mercado de trabalho, mas também as das relações interpessoais, vamos conhecendo mais gente diferente da gente”, complementa o professor.
Ainda sobre a profissão, o professor de biologia ressalta um aspecto importante. De acordo com ele, na maioria das escolas onde trabalhou, ele teve uma relação respeitável com os alunos. Por outro lado, André confessa que alguns episódios são difíceis de enfrentar. “É difícil porque a gente tem que saber falar com o aluno, não podemos constranger o estudante, mas a aula tem que seguir mesmo quando ele está trabalhando, por exemplo. Noto hoje que o aluno está muito detentor de um poder de agredir a relação. Ou você tem muito tato, ou vai perder o controle. Graças a Deus não passei por situações muito graves, mas tenho conhecimento de colegas que passaram por sérios episódios”, conta.
André encara 80 aulas por semana, entre escolas e cursos pré-vestibulares. Segundo ele, mesmo com o tempo apertado – contexto comum ao de muitos professores -, é fundamental investir em formação continuada. “Sou muito disciplinado e consegui fazer várias qualificações”. Desafios da profissão à parte, o professor ainda assim acredita que essa é a única carreira que ele pode seguir. “Não me vejo fazendo outra coisa. Não posso ser outra coisa, sou o professor André Luiz, de biologia. É a questão da vocação que sustento até hoje. Mesmo diante de tantos problemas, ainda sonho em ver minha profissão valorizada pelo país. Através de nós, docentes, a sociedade alcança seus anseios profissionais. Enquanto eu tiver saúde, serei professor”, conclui.