O Ministério Público Federal (MPF) ingressou com ação civil pública pedindo indenização por danos morais coletivos em decorrência da prática de racismo por um apresentador Stanley Gusman que, em julho do ano passado, afirmou: “[…] Eu sei quem é o dono do Ibope. O nome do cara é Montenegro. Se ele fosse do bem, ele ia chamar Montebranco”. A ação pediu a condenação do apresentador de afiliada do SBT ao pagamento de indenização no valor de R$ 200 mil.
Imediatamente após a afirmação, feita ao vivo durante o programa Alterosa Alerta, da TV Alterosa, afiliada do SBT em Minas Gerais, a edição do programa e o apresentador comemoraram efusivamente a fala por meio do emprego de recursos de sonoplastia que reproduziram o som de uma bateria.
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Para o MPF, o fato “extrapolou a esfera da legítima e constitucionalmente protegida liberdade de expressão, incorrendo na prática de discurso do ódio – hate speech, conduta vedada pelo ordenamento jurídico pátrio, violando, dessa forma, direitos transindividuais das pessoas negras”.
Tanto assim é que, posteriormente à enorme repercussão do caso, o apresentador firmou um Acordo de Não Persecução Penal com o Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MP/MG), no qual reconheceu a prática do crime de racismo e assumiu o compromisso de "produzir matéria televisiva abordando as causas e efeitos de microagressões perpetradas cotidianamente contra negros”.
“Tal acordo, no entanto, não reparou os danos morais coletivos sofridos pelas pessoas pretas e tampouco responsabilizou as pessoas jurídicas SBT e TV Alterosa pela ocorrência da conduta discriminatória. E o que é pior: na verdade, o vídeo produzido por ele para, supostamente, compensar o crime, acabou incorrendo em mais discriminação”, afirma o procurador regional dos Direitos do Cidadão, Helder Magno da Silva.
Agravamento da conduta – Ele relata que o material, a pretexto de advertir sobre o racismo estrutural, “acabou reforçando, por diversas vezes, a associação do negro a coisas negativas, porque reproduz simbologias, estereótipos e ideias que reiteram o menosprezo, desrespeito e subjugação da cultura e dos povos negros”.
“A conclusão que se tira ao assistir ao vídeo é somente a de que não se pode fazer as associações ali mencionadas, senão a pessoa poderá ser presa. É como se o problema estivesse na lei e não na vilania de tais condutas”, explica.
Ainda segundo o procurador, “No material, não há qualquer articulação coordenada e responsável sobre as consequências desses racismos cotidianos e das microagressões, externalizados pela linguagem, na vida das pessoas pretas. Fica evidente que o material não foi produzido em conjunto ou sob a supervisão de qualquer entidade representativa dos negros. É, de novo, a visão do homem branco a respeito de um universo que desconhece e discrimina”.
Por isso, o MPF defende que, ainda que o cumprimento do Acordo de Não Persecução tenha resultado na declaração da extinção de punibilidade de Stanley na esfera criminal, isto não pode afastar sua responsabilização civil, muito menos a das emissoras que transmitiram a conduta ilegal e sequer foram sujeitos da investigação criminal.
A ação também cita jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) no sentido de que esse tipo de conduta não se insere no conceito de liberdade de expressão, e que “a responsabilização a posteriori, em regular processo judicial, daquele que comete abuso no exercício da liberdade de informação não traduz ofensa ao que dispõem os §§ 1º e 2º do art. 220 da Constituição da República, pois é o próprio estatuto constitucional que estabelece, em favor da pessoa injustamente lesada, a possibilidade de receber indenização "por dano material, moral ou à imagem", conforme o artigo 5º, incisos V e X da Constituição.
Alcance – Ao tratar dos danos morais coletivos causados pelo programa, o MPF destaca que a fala foi proferida em um veículo de comunicação de massa por alguém que exercia/exerce importante papel de apresentador/âncora, potencializando seu alcance a um sem número de telespectadores.
“A conduta discriminatória, proferida e reproduzida pelos demandados teve um alcance amplo em diferentes mídias, não ficando restrita apenas ao horário de exibição do programa Alterosa Alerta. Como demonstrado, sua reprodução se dá de maneira contínua e ininterrupta pelas redes sociais e plataformas de vídeo, consolidando uma narrativa que propaga o ódio e a violação de direitos de pessoas negras. E encoraja condutas discriminatórias e ilegais que, reiterada e repetidamente, cerceiam direitos, agridem pessoas e ceifam vidas”, destaca o MPF, lembrando que “mesmo que os links para o vídeo atualmente disponibilizados na plataforma Youtube fossem retirados do ar, ainda assim não cessaria a potencialidade da contínua reprodução da discriminação, seja pelos uploads em novos links, seja pela replicação dos vídeos por intermédio de aplicativos de comunicação social como WhatsApp e Telegram”.
Pedidos - Por isso, segundo a ação, é necessário que a Alterosa e o SBT, além de serem condenados, cada um, ao pagamento de indenização por danos morais coletivos no valor de R$ 2 milhões, também sejam obrigados a arcar com os custos econômicos da produção e divulgação de contra-narrativas ao discurso do ódio, em vídeo e sítio eletrônico, com a efetiva participação de entidades representativas dos povos negros.
Isso porque, de acordo com o MPF, “a cessação do ilícito não é alcançada pela simples retirada de material discriminatório, mas sim pela apresentação de uma visão não discriminatória, (..) que garanta o respeito à diversidade e à afirmação da negritude, como forma de neutralização da ilicitude da discriminação”.