Nas fortes batidas do tambor e palmadas marcadas no pandeiro, a sonoridade ganha forma em busca do ritmo ideal. A musicalidade recebe ainda o incremento de outros instrumentos de percussão, além de vozes que conduzem canções envolventes, afinadas e com uma proposta que vai além da habilidade musical. Quando dezenas de homens se unem em volta de um professor para dar o tom perfeito a músicas tradicionais da cultura brasileira, o objetivo principal, ainda assim, não é o tom perfeito. O que se busca é a paz mental e a vitória em uma guerra contra o obscuro mundo das drogas.
A cada batida, um passo contra o vício. A cada canção, uma prova que a droga não é imbatível. E no ritmo envolvente da percussão, homens antes submetidos à penúria da dependência química constroem, aos poucos, uma história de superação por meio de atividades que servem como ferramentas de apoio ao tratamento psiquiátrico. Essa é uma das alternativas adotadas no Recife para ajudar quem aceitou brigar contra os malefícios das drogas e passou a sentir prazer em afazeres que despertam talentos e rememoram o gosto pela musicalidade deixado para trás na época da dependência.
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No bairro de Afogados, Zona Oeste da capital pernambucana, o Centro de Atenção Psicossocial (Caps) recebe, há quase três anos, aulas de percussão para cidadãos que precisam de tratamento contra o vício em drogas, tais como crack e álcool. A atividade é promovida pela Prefeitura do Recife de forma gratuita e atende mais de 100 alunos semanalmente, sem exigência de qualquer experiência musical. Um dos objetivos da iniciativa é desenvolver habilidades mentais entre os participantes por meio dos ritmos, além da tentativa de despertar prazer em uma atividade diferente do consumo das drogas. Os instrumentos são distribuídos entre os pacientes e, sob o comando do professor Ubiratan Pereira, todos ensaiam e interpretam canções brasileiras de diferentes ritmos.
Na luta diária contra o vício, as aulas de percussão realizadas no Recife não representam as únicas atividades alternativas de subsídio ao atendimento psiquiátrico. Iniciativas com temáticas artísticas e de terapia ocupacional unem forças para ajudar os profissionais de saúde no tratamento dos pacientes, sob o entendimento de que as drogas, principalmente o crack, tornaram-se uma mazela social que precisa, radicalmente, ser combatida. Para isso, é fundamental o trabalho em conjunto entre poder público, organizações não governamentais e sociedade civil.
Ciente da difícil missão que é o enfretamento das drogas no Brasil, o professor Ubiratan explica que as dificuldades não podem diminuir o ímpeto dos educadores e oficineiros que se utilizam das atividades alternativas. Para ele, o lúdico tem um papel importante no processo de ressocialização dos pacientes, e quando a música torna-se uma ferramenta, os próprios alunos passam a se envolver nas aulas com mais afinidade.
“Um dos objetivos também é dar facilidade para que eles se desenvolvam artisticamente. Eles se valorizam e muitos gostam de música! Mostramos a possibilidade de crescerem artisticamente e, mesmo sem experiência com instrumentos musicais, passam a desenvolver o manuseio. Já encontrei até músicos que se redescobriram nas aulas de percussão, e durante os encontros trabalhamos técnicas vocais e canto, por meio de obras da cultura popular, como forró, maracatu, MPB, samba e reggae”, explana o professor de percussão, complementando que os alunos já realizaram apresentações em festividades promovidas no Recife.
A musicalidade dos instrumentos, de acordo com o professor, desperta a memória dos alunos, contribuindo para o tratamento. “Há o desenvolvimento da saúde mental. Eles puxam pela memória algumas músicas que já conheciam e quando esquecem, eu relembro. Devido ao uso de álcool e outras drogas, eles são afetados, existe esquecimento, falta de concentração. A música ajuda no processo de concentração, porque o alinhamento do ritmo, a partir das batidas diferenciadas que formam uma canção, exige atenção. Eles são muito receptivos com a música e, graças a Deus, todos eles têm aceitado o trabalho. As aulas trazem animação, eles se sentem à vontade, relembram canções que os deixam bem. A música tem o poder de unir e eles estão juntos nessa caminhada contra as drogas”, destaca Ubiratan.
Aos 43 anos, José Cláudio Santana, morador do bairro da Mangueira, no Recife, aceitou o desafio de combater o álcool. Ele procurou os serviços do Caps e resolveu participar das aulas de percussão como complemento do tratamento psiquiátrico. Segundo José, as aulas proporcionam tranquilidade, sentimento praticamente oculto na fase do vício. “Cada aula traz algo de bom para a gente. Aqui esqueço das coisas ruins da rua, canto, toco os instrumentos, me sinto bem. Aqui a gente se une para ajudar um ao outro. E ter música é muito bom”, conta.
Assim como José, Marcilio Antônio da Silva, 34 anos, decidiu lutar. Por causa do vício, passou por problemas familiares, perdeu oportunidades de trabalho, mas teve a consciência de que precisava de ajuda profissional. Além do tratamento psiquiátrico, o rapaz, que também reside na Zona Oeste do Recife, aderiu às aulas de percussão. Embalado no ritmo das batidas, Marcilio enxerga na música um momento de liberdade e que pode ofuscar o caminho das drogas. No vídeo a seguir, acompanhe o professor Ubiratan e os alunos em uma aula de percussão e de que forma ela gera benefícios.
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Artesanato, cores e paz
Objetos cujo destino seria o lixo passaram a ser reciclados em prol do artesanato. Em paralelo, vidas se reciclam em busca da vitória contra a dependência química. Tudo começa a ganhar forma e cor, e por mais que pareça apenas uma simples atividade artística, é de fato mais uma alternativa para recuperar a dignidade de cidadãos antes vítimas das drogas. No bairro do Ipsep, Zona Sul do Recife, unidade do Caps oferece oficinas para pacientes que, gratuitamente, recebem tratamento no local.
Garrafas pet, papelão, tinta e papel são alguns objetos que dão vida a peças de artesanato, como brincos, diademas, bacias, colares, entre outros. Semanalmente, cerca de 40 alunos recebem instruções de reciclagem e colocam a mão na massa para confeccionar os produtos, utilizando tesouras, tinta, papeis, cola e tecidos coloridos. Além de servir como terapia ocupacional e ajudar o tratamento psiquiátrico, a iniciativa também procura despertar nos participantes uma chance de empreender e fazer da produção artesanal uma fonte de renda. Os produtos, inclusive, são comercializados em espaços públicos do Recife e toda renda é distribuída entre os artesãos. Os valores das peças variam de R$ 7 a R$ 50.
“Trabalho diretamente com os usuários ensinando arte, artesanato. Comecei trabalhando com reciclagem, porque é um tipo de atividade que facilita eles acharem os produtos, como garrafas, latas de queijo, revistas, papelão... Eles têm um interesse enorme de conseguir os materiais para as aulas e é gratificante ver a forma como eles trabalham”, explica a arte-educadora Lourdes Maria Gouveia de Albuquerque.
De acordo com a integrante da equipe técnica da Coordenação de Saúde Mental da Prefeitura do Recife, Veruska Fernandes, além do próprio artesanato como ferramenta parceira do tratamento psiquiátrico, as unidades dos Caps têm como meta incentivar o empreendedorismo entre os participantes. “Dentro dos serviços já existem atividades terapêuticas. E o que a gente vem tentando fortalecer é a questão da geração de renda, porque pode servir como um aporte financeiros para os alunos”, explana Veruska.
Há quase quatro meses, Jorge Coelho Neto, de 53 anos de idade, participa das oficinas de artesanato. Para ele, as aulas se tornaram mais fáceis e atrativas, já que ele próprio trabalha com artesanato, confeccionando miniaturas de barcos. De acordo com Jorge, a reciclagem prende a atenção dos participantes e se apresenta como uma alternativa valorosa no tratamento.
Segundo o gerente clínico da unidade do Caps do Ipsep, Marcio Soares, a oficina desperta prazer nos alunos. “Muitas vezes, a questão da droga desorganiza os usuários, ao ponto que eles não conseguem sentir prazer em outras coisas. E esta atividade é prazerosa, e saúde, ampliando seu conceito, dá acesso à cultura, arte e direitos. O artesanato tem um impacto na autoestima e na possibilidade da satisfação para além do uso de drogas. Você passa a sentir prazer em outras atividades”, comenta Soares.
Recife conta com 17 Caps. Parte deles beneficia usuários de álcool e outras drogas, enquanto também existem unidades exclusivas para pessoas diagnosticadas com problemas mentais. Os endereços e telefones dos Centros podem ser conferidos no site da gestão municipal. Assista, a seguir, a um vídeo com mais detalhes da oficina de artesanato.
Parceria em nome da saúde
Da mesma forma que é visível a importância da música, arte e terapia ocupacional como ferramentas para o tratamento dos pacientes, é fundamental entender que essas são ajudas que subsidiam o tratamento médico. A psiquiatria não pode ser deixada de lado durante a recuperação de dependentes químicos, mas sim precisa caminhar, harmonicamente, paralela às ideias que levam o lúdico para pessoas que necessitam de ajuda.
Psiquiatra diretora da Sociedade Pernambucana de Psiquiatria, Luciana Paes de Barros explica que o tratamento médico se apresenta indispensável contra o vício. No entanto, ela destaca o valor das atividades alternativas, a exemplo do artesanato e da música. “Esse tipo de atividade não é o tratamento em si, é uma parte dele. O tratamento de dependência química envolve várias áreas, porque é uma doença. Então, quanto doença, precisa ser vista dentro da questão orgânica, como está a saúde desse indivíduo, a situação física e mental. Precisa ser vista a percepção do que está acontecendo, a conscientização dele. Parte do tratamento é usar esse tipo de acessório, para fazer com que esse indivíduo utilize medicamentos e passe por desintoxição”, orienta a especialista.
Segundo a psiquiatra, também é importante trabalhar a possibilidade dos pacientes se envolverem com algum hobby ou atividade de qualificação que possa ajudá-lo a desenvolver-se mentalmente. “Cursos, verificação de habilidades vocacionais, para uma melhor inserção para a volta nas habilidades laborais. Voltar a estudar é importante. É interessante mostrar outras formas que têm prazer – diferente da droga -. Isso tudo pode fazer com que o indivíduo valorize o real prazer da vida, que antes ele já não tinha mais”, frisa.
Sobre a prática de trabalho que envolve médicos psiquiatras, oficineiros e terapeutas ocupacionais, Luciana Paes detalha que existem encontros contínuos entre os profissionais para definir o tratamento ideal de cada grupo de pacientes. Esse diálogo facilita a escolha das atividades mais indicadas para a recuperação dos indivíduos. “Nos Caps você tem reunião de equipes e todos participam. Também existem as assembleias, que também contam com a participação dos pacientes que podem reivindicar algo. Nas reuniões sem os pacientes, existe uma troca com os outros profissionais em relação às suas visões sobre paciente, para que se entenda o que precisa ser trabalhado durante o tratamento. É uma complementação das áreas da saúde, psicológica, terapia ocupacional, educação física, psiquiatria, entre outros segmentos”, comenta a diretora da Sociedade Pernambucana de Psiquiatria.
Ainda em entrevista ao LeiaJá, Luciana Paes traz mais detalhes dos tratamentos utilizados para combater o vício em drogas, bem como ela opina acerca do principal desafio para quem resolve enfrentar a dependência química. As informações você confere no áudio a seguir:
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