É sexta-feira a noite e a medida que os ponteiros do relógio informam que a madrugada se aproxima, a disputa por uma cadeira e ao menos um lugar no canto da parede aumenta. No saguão principal da ‘sala de espera’ da Emergência Traumatológica do Hospital da Restauração (HR), no bairro do Derby, região central do Recife, colchões são improvisados com lençóis e papelões. As malas e mochilas servem de travesseiro. Enquanto aguardam por notícias dos pacientes, as pessoas compartilham histórias, insatisfações e solidariedade com a situação do outro. Nem a exibição do capítulo final da novela global ‘A Força do Querer’, em uma televisão que fica em frente às poltronas, distrai os acompanhantes e torna a espera menos angustiante.
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A sala não comporta a quantidade de gente necessitada de estar alí. São pessoas pelo chão, na maioria vindas do interior de Pernambuco para buscar atendimento na unidade de saúde. A emergência do HR é referência em politraumatismo e traumas neurológicos, de maior complexidade em geral do Norte/Nordeste. Também é a maior unidade da rede de saúde pública do estado.
Na rampa principal de acesso ao hospital, a movimentação das ambulâncias é constante e as sirenes alertam que mais um paciente está chegando ou sendo transferido da unidade. Veículos da Polícia Militar também transitam pela entrada principal do prédio. Pacientes e acompanhantes costumam comentar a grande presença de policiais e seguranças particulares do hospital. "São mais vistos do que os próprios médicos", brincam. Um posto oficial da Polícia Civil também fica na sala de espera da emergência. Um dos profissionais do HR explica que por causa da demanda alta de presidiários e custodiados é constante a presença dos PMs.
Mulher decidiu dormir na rampa de acesso ao Hospital da Restauração
Após passar pela porta principal da sala de espera, uma placa amarela de “cuidado, piso molhado” indica aos que passam por lá a presença de uma infiltração no teto do local. Entre uma hora e outra, uma mulher dos serviços gerais faz a limpeza do chão cheio de água. Olhos atentos, conversas no telefone e impaciência. Na porta que dá acesso à Emergência de traumatologia, um segurança faz o controle de quem pode entrar no local. Mas, com a intensa movimentação no plantão, algumas pessoas conseguem acessar o corredor, sem a percepção dos funcionários, em busca de mais informações de seus familiares.
De acordo com as regras do local, o acolhimento do paciente é elencado por uma classificação de risco. Após uma triagem, eles são destinados a uma das cinco áreas do hospital. Na ala vermelha, a mais grave, o atendimento é imediato. Para lá, geralmente são levados os casos mais graves, como acidentes automobilísticos, tiros e facadas. Na laranja, o atendimento é feito em até dez minutos. Amarela, uma hora, e na verde em até duas horas. Os casos considerados menos graves são encaminhados para à ala azul e a estimativa é de quatro horas.
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Há cinco dias residindo de forma temporária no hospital, a dona de casa Márcia* - preferiu dizer apenas o primeiro nome - diz que acompanha o seu marido, internado na unidade de saúde após ser transferido da UPA de Dois Unidos, na Zona Norte do Recife, com uma tuberculose na coluna. Sem condições de ir e voltar de sua casa por não ter dinheiro para a passagem de ônibus, ela permanece nos corredores do hospital e quer a saída do companheiro do ‘ala vermelha’. “O caso dele não é tão grave assim e nesse local é onde acontece a maior disseminação de bactérias. Tenho medo de perdê-lo por causa da falta de higiene do hospital”, afirma.
Cenas teimam em se repetir
Por volta da meia-noite, a reportagem teve acesso a imagens da parte interna do HR. Do lado de dentro, ainda mais precariedade. Atendimentos feitos de forma improvisada em macas encostadas nas paredes do corredor. Falta higiene, profissionais da saúde e acompanhantes muitas vezes fazem o papel dos enfermeiros. Como não há vagas para todos os necessitados, macas são improvisadas e servem de leitos pelos corredores. Os quartos estão cheios e a UTI de traumatologia superlotada.
O cenário é de um hospital saturado. O HR possui 482 leitos registrados no Ministério da Saúde, mas somados os extras para atender a demanda de pacientes, funciona com um total de 723 leitos. A média mensal é de 2,2 mil internações, 800 cirurgias, 10 mil atendimentos emergenciais e 13 mil ambulatoriais. Para dar conta do alto número, são apenas 3,5 mil funcionários. De acordo com uma enfermeira que trabalha na unidade de saúde há quase 30 anos, em um dia de plantão agitado, a emergência recebe cerca de 600 pacientes em uma noite. Ela diz que a média é de um médico para 100 pessoas.
“O hospital é muito agitado. Mas eu já me acostumei com essa rotina. Mesmo com a unidade lotada, a gente recebe os pacientes, mesmo que depois a gente consiga transferi-los para outros centros médicos. Tentamos da melhor forma dar a assistência, mas a família muitas vezes chega estressada por causa da situação de gravidade do acidentado. O estado deveria investir em mais hospitais da rede pública porque só o HR não dá conta de Pernambuco”, diz a enfermeira.
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Já são duas da manhã e sentada do lado de fora da Emergência de Traumatologia, Aldevania Maria, 39, fuma um cigarro para aliviar o estresse e amenizar as preocupações com a sua irmã, internada no HR há um mês. Ela veio de Caruaru, no Agreste de Pernambuco, para tratar da parente no Recife porque o hospital da cidade não tinha estrutura. “Minha irmã teve um AVC e foi descoberto que ela tinha cinco aneurismas na cabeça”. Sem condições de ficar de forma ininterrupta no HR, ela reveza as semanas com o restante de sua família. “Se ela tivesse ficado em Caruaru tinha morrido”, diz.
Aldevania lamenta a falta de estrutura a área da saúde no interior de Pernambuco
Aldevania pontua que apesar da superlotação e dos inúmeros problemas da Restauração, o centro é referência e sua irmã tem sido bem assistida. Mas, para ela que acompanha a irmã, a situação é desumana. “Não há suporte para os acompanhantes. A gente se vira no chão, no cantinho pega um assento sai e perde de novo. A vaga é de quem chegar. Não tem nem água. Para lanchar ou almoçar, a gente vai em alguma barraquinha mais barata e compra com nosso próprio dinheiro”, lamenta.
Ela também critica a falta de cuidado em dar notícias aos familiares. Diz não haver preocupação, nem estrutura do hospital. “Hoje chegou uma senhora desesperada. Ela não estava acompanhando o marido, mas pressentiu em casa o seu falecimento. Quando chegou aqui, descobriu que ele já tinha morrido. E o hospital nem se preocupou em dar a notícia antes, ela preciso vir até aqui e tomar esse choque”, denuncia Aldevania.
Adriana, 46, veio de Lajedo, também no agreste. Ela recebe um dinheiro para ser cuidadora de um idoso de 87 anos que veio amputar uma das pernas. Ela dorme na unidade de saúde há três dias e lamenta a falta de humanidade dos seguranças do HR. “É injusto a gente não poder se encostar um pouquinho nas paredes. Somos de carne e osso. Será que esse pessoal não tem família? Estamos cansados e não tem onde sentar, sao poucas cadeiras. Não pode deitar um pouco pra descansar umas horas? O corpo é fraco”, conta a cuidadora.
Faltam luvas, macas e uma série de equipamentos médicos
Enquanto descansava no horário de intervalo e fazia um lanche em uma barraquinha improvisada na rampa do HR, já que o comércio formalizado fecha às 0h, uma técnica de enfermagem, que também preferiu não se identificar por medo de retaliações da direção da unidade de saúde, denunciou a falta de equipamentos básicos. Colchões, luvas para procedimento médico e capotes são alguns deles. “A gente usa uma e tenta reaproveitar. Isso é um perigo porque a bactéria se prolifera. É um risco de contaminação”, revela. Para ela, o HR não dá conta da alta demanda e deveria ser exclusivamente um centro de alta complexidade.
“Mas porque as UPAs não dão uma assistência melhor, os casos acabam vindo pra cá e isso superlota o local. Aqui não tem vaga. A gente tem pacientes da UTI que já eram pra ter alta. Mas, os andares não tem vaga e aí eles acabam ficando lá. Correm um risco porque na UTI tem bactérias resistentes”, destaca.
Procurada para esclarecer a falta de materiais de trabalho e a superlotação do HR, a Secretaria Estadual de Saúde informou que reconhece a alta demanda de pacientes em sua unidade, principalmente devido à epidemia de acidentados de trânsito.
"Mesmo assim, a unidade reforça seu compromisso com o atendimento aos usuários do SUS. A direção ainda reforça que a unidade está devidamente abastecida com os insumos médico-hospitalares e que não procedem as informações sobre falta de material básico (luvas, gazes, fraldas etc) e que tem adquirido novas macas para o atendimento hospitalar. O Hospital da Restauração é uma unidade referência para atender casos de queimaduras graves, intoxicação exógena e por animais peçonhentos, vítimas de violência – agressões por arma de fogo e arma branca - e acidentes de trânsito, atraindo pessoas de todo o Nordeste", diz um trecho da nota.