É de contagiar a energia positiva da senhora Vera Lúcia da Silva, de 54 anos. O sorriso firme condiz com suas conquistas, atreladas ao sucesso profissional da filha Cristiane Maria da Silva Sérvio, 31 anos. Mas antes de toda essa felicidade que impera na família, há uma história de luta e superação, em que os “nãos” da vida jamais ofuscaram o brilho de duas mulheres que nunca caíram diante das dificuldades. O que existe em comum entre mãe e filha é que a educação sempre esteve no topo das prioridades. Acertadamente, elas acreditaram na força dos livros.
Desde a adolescência, Vera precisou trabalhar. Era de família humilde. Sem ter a oportunidade de estudar quando criança, aos 12 anos de idade começou a prestar serviço de doméstica. Saiu de Ribeirão, no interior de Pernambuco, e se lançou no Recife, pois a cidade grande seria, na teoria, a oportunidade ideal de ascensão econômica. Por muito tempo, trabalhou em residências de famílias com forte poder aquisitivo, e praticamente não tinha espaço para se dedicar à educação.
##RECOMENDA##Na fase adulta, teve três filhos. Um deles é Cristiane, personagem importante da dura história de dona Vera. Para manter o bem estar das crianças, a mãe dedicava todo seu tempo aos serviços de doméstica, enquanto os filhos ficaram em Ribeirão sob os cuidados da avó. Era na cidade interiorana que Vera compartilhava seu suado dinheiro. “Minha mãe tomava conta deles lá em Ribeirão e todos os meses eu levava as despesas”, relembra dona Vera.
A saudade apertou e Vera resolveu levar os filhos para o Recife. Ela recorda que nunca contou com a ajuda do pai das crianças, precisando tocar a vida sozinha, a base de muito trabalho. Quando Cristiane tinha apenas dois anos de idade, a doméstica construiu um barraco de madeira no bairro de Roda de Fogo, Zona Oeste do Recife, e passou a morar com os três filhos. A situação era crítica, mas Vera não desistia de trabalhar para garantir um futuro digno aos pequenos. “Na época, a pobreza era triste. No trabalho, eu só sabia que tinha hora para pegar. Largava muito tarde”, conta.
Depois da casa no bairro de Roda de Fogo, a família se mudou para uma residência na comunidade do Detran, também na Zona Oeste do Recife. Foi nessa casa onde Vera reforçou sua visão de que a educação é a única alternativa de mudança social para ela e sua família. Cristiane, aos cinco anos de idade, começou a estudar. Tanto ela quanto os irmãos eram cobrados veemente por bons resultados na escola. A mãe, exigente, não queria que os filhos trabalhassem, apenas deveriam se dedicar aos estudos.
Enquanto as crianças tinham a oportunidade de conviver com a formação educacional, dona Vera continuava sua luta como doméstica. Relembra de pelo menos 20 casas onde trabalhou de forma honesta e mantendo a esperança por um futuro promissor. No contexto dessa rica história, ela recorda tristes capítulos. “Algumas casas não deixavam eu estudar, era analfabeta. As patroas diziam que eu não podia. Uma vez, no lixo, achei um livro de biologia. Achava um nome interessante e sempre dizia que tinha que arrumar um jeito de estudar. Quando fiz 21 anos, em uma das casas que trabalhava, resolvi estudar, mesmo contra a vontade da minha patroa”, conta dona Vera.
Depois de insistir e continuar acreditando na educação, Vera Lúcia conseguiu conciliar a profissão de doméstica com os livros. Completou o ensino médio – época em que, enfim, conseguiu estudar biologia e desvendar os assuntos da disciplina - e seguiu acompanhando de perto os filhos na escola. Aprendeu a ler, participou de capacitações e ainda sonha em cursar uma graduação. No vídeo a seguir, ela relembra detalhes da sua história:
[@#video#@]
Rumo ao doutorado
Cristiane dedica sua felicidade à força de vontade da mãe. Tem orgulho da doméstica que enfrentou a pobreza em prol da educação dos filhos. Se emociona ao lembrar das cobranças e das extensas horas da mãe limpando casas, mas disposta a derrubar o cansaço para responder às atividades escolares junto com os filhos. Era comum Vera acordar Cristiane e os irmãos, todos os dias, por volta das 5h, para resolver os quesitos passados pelos professores, pois não queria pendências nas atividades. Só depois ela seguia sua dura rotina como doméstica.
No ensino fundamental, Cristiane recorda que sua mãe, com muito sacrifício, bancou uma escola privada. “Nunca soube o que era trabalhar. Minha vida foi só estudar graças à minha mãe”, comenta a jovem. Na adolescência, entretanto, acompanhou a mãe durante um serviço que foi responsável por despertar de vez seu gosto pelos estudos. A experiência marcou sua vida.
“O que me fez querer estudar foi quanto fui fazer uma faxina com minha mãe. Ela me levou para eu entender o que ela passava, para dar valor a cada centavo que ela ganhava. Lembro como hoje que a faxina era em uma sala da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). A gente deveria limpar os livros de um professor. De repente, vi aquele monte de alunos estudando, entrando nas salas, enquanto minha mãe trabalhava muito duro. Aquilo deu uma angústia no meu coração e a partir daí coloquei como foco na vida que eu deveria estudar”, relembra Cristiane.
De acordo com Cristiane, sua convivência foi intensa com os filhos dos patrões da mãe. Ela recorda que todos admiravam sua sede pelos livros e sempre apoiavam sua vontade de vencer. A jovem voltou a acompanhar a mãe em algumas faxinas em salas de professores da UFPE, aproveitando a oportunidade para conhecer de perto as experiências dos docentes e ler obras que as inspiravam nos estudos.
No decorrer da vida escolar, Cristiane finalizou o ensino médio em escolas públicas e conseguiu ingressar em um curso técnico de agropecuária. Porém, seu grande sonho era ingressar no ensino superior. Para isso, horas e horas foram dedicadas aos estudos, além do enfretamento das dificuldades financeiras que cercavam a família. Aos 20 anos de idade, Cristiane foi aprovada no curso de medicina veterinária da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e extravasou em alegria junto à dona Vera. Era só o início de mais uma dura caminhada nos trilhos da educação.
“A única pobre da sala era eu. Quando cheguei na universidade tive muita dificuldade financeira para bancar a passagem. Teve momento em que passei o dia todo na universidade só com um lanche, porque não tinha dinheiro para comer direito. Nunca comprei livro, tive que me virar com cópias. Mãe nunca me negou, sempre dava a quantia que podia, mas ainda não era suficiente. Houve uma época que faltei aulas sem minha mãe saber, porque não tinha mais dinheiro para pagar passagem. Até que um professor descobriu a situação e me ajudou financeiramente, também não esqueço dos amigos que, por várias vezes, pagavam comida e cópias”, relata a veterinária.
As barreiras insistiram, tentaram impedir a caminhada de Cristiane, mas ela sabia que a educação era sua única alternativa de ascensão social. Superou todos os empecilhos e concluiu a graduação. Depois ingressou e finalizou o mestrado, passando a integrar pesquisas científicas do segmento veterinário. Ela relembra ainda, na época da graduação, que até pulou a grade da universidade em um dia de folga, porque precisava dar continuidade a um experimento que exigia prática contínua. Essas e outras histórias são o motivo de orgulho de dona Vera e de professores que acompanharam a caminhada de luta da veterinária. Agora, ela está prestes a concluir o doutorado, mas não cessa de acreditar nos benefícios da educação.
Matéria integra a série "Eles acreditaram na edução", do LeiaJá. As reportagens trazem histórias de pessoas que conseguiram ascenção social por meio do ensino superior. A seguir, confira as demais matérias:
LeiaJá também
--> Eles acreditaram na educação
--> Da busca por comida ao ensino superior
--> "Meu sonho era entrar na faculdade"
--> A luta do canavial na memória de um jovem médico