Vigas de madeira formam o esqueleto da estrutura – geralmente as vigas são de tamanhos diferentes, precisando do apoio de tijolos para o nivelamento. Em seguida, há um envelopamento pouco cuidadoso com pedaços de madeira dos mais diversos tamanhos. A coberta é de telhas de fibrocimento, as populares telhas Brasilit. Uma porta na entrada, uma privada na quina do único cômodo. Em questão de minutos, toda essa construção pode virar cinzas, como puderam presenciar os moradores da comunidade Via Mangue, na Vila Santa Luzia, no bairro da Torre, Zona Norte do Recife, no dia 3 de fevereiro deste ano.
A Defesa Civil ainda está fazendo cruzamento de informações para confirmar quantos barracos foram destruídos no incêndio. No dia do fato, o secretário-executivo da Defesa Civil, Cássio Sinomar, disse que “muito mais de 50 barracos foram atingidos”. A fundadora do Centro de Ensino Popular de Assistência Social de Pernambuco Santa Paula Frassinetti (Cepas), Elza Nira da Silva, acreditava que as chamas destruíram aproximadamente 200 barracos.
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A comunidade Via Mangue é extensa – 550 famílias, segundo Elza Nira -, e o fogo destruiu apenas um trecho. Aonde o fogo não chegou, apesar de todos os riscos, famílias continuam vivendo nos barracos, com mesmas condições de moradia das pessoas que viram suas casas desaparecerem em minutos.
“Eu tenho medo de que tenha um novo incêndio, mas não tenho para onde ir. A gente tem medo que alguém chegue aqui e toque fogo, mas a gente tem que ir arriscar”, diz o autônomo Edvaldo José de Oliveira Neto, 31 anos, que hoje tem como vista um terreno de cinzas. “Já passava pela cabeça que podia pegar fogo aqui”, complementa. Mesmo que sua casa tenha sobrevivido, Edvaldo teve a geladeira e o fogão furtados na confusão.
O medo constante está presente também no discurso do morador Willian da Silva, 48. “Quem mora em comunidade já vive 24 horas na tensão de um incêndio”, comenta. Mais uma vez, apesar do medo, ele resiste. A casa de Willian, ao contrário das demais, era de alvenaria e conseguiu ficar de pé. Neste momento, sua moradia se destaca no centro de um local formado de restos incinerados da comunidade.
Antes das chamas do dia 3 de fevereiro, a comunidade Via Mangue já havia escapado de outras possíveis varrições. “O primeiro princípio de incêndio que eu lembro foi em junho do ano passado. Pegou fogo nuns dois barracos, o pessoal parece que estava bêbado, mas deu para a gente apagar. Mas por quê? Por causa da época que era chuvosa. E a segunda vez, eu estava trazendo material para casa, e no começo da favela, lá na frente, começou a dar um curto por cima dos telhados, pegou fogo, mas conseguimos apagar”, recorda Willian da Silva.
A vendedora Ana Paula, 37, também perdeu a casa. No dia seguinte, ela já havia construído outra no mesmo ponto. “Peguei R$ 200 emprestado com meu irmão, comprei R$ 100 de madeira e R$ 100 das telhas. No outro dia, minha filha conseguiu uma porta”, relata. Ana diz não ter mais medo. “Eu acho que se o pessoal vir morar aqui de volta vão ter mais cuidado, porque viram o fogo que deu”, opina.
Para o morador Rosalvo Ney, 34, companheiro de Ana Paula, do jeito que a situação está, com poucas casas isoladas, não há perigo. “O único barraco que tem aqui é o meu, o dele [Willian da Silva] e uns mais distantes. Se o fogaréu atingisse não ia prejudicar nem ele e nem eu, então a gente não está com aquele medo que a gente tinha”, explica.
A Polícia Militar e a Prefeitura do Recife têm aparecido na comunidade e impedido a construção de novas estruturas. O promotor de Justiça do Meio Ambiente da Capital, Ricardo Coelho, também recomendou que o município remova as construções irregulares às margens do Rio Capibaribe, mas que também inclua os moradores em programas sociais de habitação e assistência social. “A administração municipal deve atuar imediatamente a fim de evitar que os moradores voltem a construir casas nos locais atingidos pelo incêndio, garantindo a proteção dos direitos fundamentos da dignidade da pessoa humana e do meio ambiente equilibrado”, disse o promotor na recomendação.
De acordo com os moradores da comunidade, estruturas que estavam sendo levantadas ou que estavam sem ninguém foram derrubadas. A Willian da Silva, teriam dito que não havia o que fazer já que sua casa estava de pé. Já Ana Paula implorou para não perder o barraco. “Eu disse ‘se forem passar o trator, eu me deito aqui e vocês passam por cima de mim”, aí eles disseram que não iam derrubar barraco com gente dentro”, lembra Ana Paula.
Para o major Edson Marconi, do Corpo de Bombeiros, viver em uma comunidade como a Via Mangue é estar rodeado de perigos de incêndio. “Há uma desorganização inicial na construção dos imóveis, não obedecendo uma distribuição geográfica lógica por ruas e quadras com afastamento entre imóveis. Esses locais são labirintos. O ar não circula de forma adequada e o fogo se expande”, salienta.
Entre os riscos que o major destaca estão os materiais utilizados nas construções de barracos, como papelões e plásticos, altamente combustíveis; gambiarras, que geralmente são feitas com fios de pequeno calibre, que podem superaquecer; utilização de forno à lenha ou sistema de botijão de gás com mangueira ou registro fora do prazo de validade. “Há uma cultura religiosa muito grande nesses locais mais humildes e há a colocação de velas no pé do santo. Essas velas podem cair e iniciar um princípio de incêndio”, ressalta Marconi.
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Déficit habitacional – A Comunidade Via Mangue também já teve outro nome. Em 2008, parte da Comunidade Abençoada por Deus foi transferida para o Conjunto Habitacional Abençoada por Deus, no bairro da Iputinga, Zona Oeste do Recife. Naquela época, segundo a Secretaria de Habitação do Recife, viviam na comunidade 849 famílias, tendo sido transferidas 428 para o conjunto habitacional e 421 sendo inscritas no programa de auxílio-moradia.
A Secretaria de Habitação contabiliza um déficit habitacional de aproximadamente 60 mil moradias na capital pernambucana. A expectativa é que 1206 unidades – 11 conjuntos habitacionais – sejam entregues até o final da gestão do prefeito Geraldo Julio (PSB), que termina no fim deste ano. Até o momento, em mais de três anos de gestão, o prefeito entregou 594 unidades, distribuídas em sete habitacionais: Santo Antônio, no Arruda (128 unidades); Felicidade, em Água Fria (40 unidades), Beberibe 1, em Porto da Madeira (27 unidades), Conjunto R4, em Dois Unidos (oito unidades), Conjunto R17, em Porto da Madeira (35 unidades) e Pilar, no Recife Antigo (36 unidades). Ou seja, em seu último ano de mandato, Geraldo precisará entregar mais casas do que a quantidade entregue nos três anos anteriores.
Atualmente, as famílias que disseram ter sido atingidas pelo incêndio estão na casa de parentes e amigos ou em dois abrigos da Prefeitura do Recife. De acordo com a Secretaria de Habitação, ficou acertada a realização de um cadastramento social na área. Para isso, está sendo feito um cruzamento de dados entre o cadastro feito após o incêndio pela Defesa Civil e um outro já existente, realizado pela Autarquia de Saneamento do Recife (Sanear). O levantamento estaria sendo acompanhado por lideranças dos moradores e deve ser concluído em breve.