Março de 2015, por volta das 18h30. A estudante Maria Eduarda Barbosa, de 22 anos, vinha caminhando da Rua dos Remédios até a estação da Abolição do BRT, na Avenida Caxangá. Tão distraída, ouvindo música no celular, ela mal percebeu a aproximação de um rapaz que tentou puxar seu aparelho telefônico, ali na praça inacabada do Túnel da Abolição. Eduarda segurou o celular e saiu correndo. Ela percebeu que outro rapaz em uma bicicleta começou a segui-la. A estudante avistou um guarda da CTTU e se aproximou, o que espantou os suspeitos.
Junho de 2016, por volta das 18h30. A fotógrafa Ana Lira, de 38 anos, vinha da Rua Real da Torre com destino a uma rua no bairro do Prado, localizada próxima à casa de eventos Baile Perfumado, precisando cortar a praça inacabada acima do Túnel da Abolição. No cruzamento com a Avenida Caxangá, ela notou quatro mulheres apreensivas. Ao abordá-las, soube que um rapaz em uma bicicleta havia assaltado aquele grupo de mulheres dias atrás. Ana só continuou o trajeto quando o homem deixou o local. Poucos metros depois, ela foi abordada por uma outra pessoa, também em uma bicicleta. Conseguiu convencê-lo de que a mochila não tinha nada de valor. O rapaz desistiu do assalto e foi embora tranquilamente, inclusive esperando o semáforo ao lado abrir.
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Mais de um ano separam as duas ocorrências. Há pelo menos um ano e três meses, o entorno do Túnel da Abolição virou um lugar inseguro de se transitar. Mas sabe-se que, na verdade, é muito mais tempo: desde que as intervenções da obra do túnel começaram a mudar aquele local.
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A Secretaria de Cidades de Pernambuco comemora o aumento da capacidade viária do cruzamento da Rua Benfica com a Rua Real da Torre. Com a inauguração do túnel, a capacidade deve estar em torno de 8.250 veículos por hora, longe dos 4.260 de anteriormente. Segundo a pasta, o túnel vem cumprindo sua missão principal que é “proporcionar a melhoria considerável da velocidade média do tráfego misto e do corredor de transporte da Avenida Caxangá”.
Para que o projeto seja completamente entregue - o que estava previsto para ocorrer em janeiro de 2014 - ainda faltam entregar o elevador que liga o túnel à praça, acabamento da escada, a própria praça e o acesso ao Museu da Abolição; todas consideradas obras de urbanização. O problema é que o planejamento urbano que privilegia a entrega incompleta de uma obra para aumentar a fluidez dos carros e deixa a urbanização para segundo plano tem, aparentemente, criado mais uma região do medo no Recife, deixando as pessoas que frequentam aqueles espaços traumatizadas.
Tanto a estudante Maria Eduarda quanto a fotógrafa Ana Lira tiveram suas vidas afetadas pelas abordagens sofridas. Desde outubro de 2015, Eduarda precisa ir semanalmente a uma consulta em um prédio da Rua dos Remédios. Ela não utiliza mais o BRT, para não ter que ir andando do final da Caxangá até o endereço da consulta. Eduarda prefere pegar um ônibus convencional, de viagem mais demorada, e descer na Rua Benfica, que fica mais próximo. “Eu tenho muito medo do que aconteceu antes. A parada que eu desço é perigosa também mas eu evito passar pela praça”, conta a estudante.
Dias depois do ocorrido na área do Túnel da Abolição, a fotógrafa Ana Lira pretendia imprimir um portfólio com uma amiga em Setúbal, na Zona Sul do Recife. “Na hora de sair, desisti porque ia ter que sair com meu equipamento e fiquei com medo de ser assaltada. Pedi para ela esperar eu colocas as fotos no Dropbox. É como se a cidade passasse a ser uma preocupação para você e isso é uma questão de planejamento urbano”.
Efeitos diretos e indiretos da insegurança
Quem é obrigado a conviver com aquela área está sempre com a sensação de vulnerabilidade. É o caso do professor Paulo Alexandre, que trabalha na Escola Estadual Joaquim Távora, na Rua Real da Torre, bem próximo da obra. “Eu passo correndo”, ele confessa e continua: “E se vem uma pessoa no sentido contrário eu já acho que vou ser assaltado. Semana passada, uma funcionária da escola foi assaltada aqui bem perto”. O professor diz que não vê policiamento em momento algum e que as pessoas marcam de ir embora da escola juntas para não encarar o caminho sozinhas.
À noite, quando os comércios próximos fecham, a escuridão predomina no local. A praça não é iluminada e o entorno é escuro e deserto. Para as obras, o governo decretou a desapropriação de 13 imóveis. Casas foram retiradas, assim como uma unidade da Igreja Assembleia de Deus. O transitar de pessoas foi drasticamente reduzido.
Em janeiro deste ano, a estudante Flávia Banastor, na época estagiária do Museu da Abolição – localizado ao lado do túnel -, chegou a assinar um abaixo-assinado que denunciava a onda de assaltos no entorno da obra. “Foi uma iniciativa dos próprios comerciantes da área”, ela lembra.
A questão da escuridão no local é agravada também porque o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) exigiu, como contrapartida da obra, que a fiação do museu fosse embutida, já que se trata de um prédio tombado desde a década de 60. A fiação até foi embutida, mas os postes específicos para este tipo de instalação não foram colocados.
O Museu da Abolição, importante na difusão dos valores da cultura afro-descendente, é um dos que mais sofre com a obra. O embutimento da fiação, por exemplo, ainda mexeu com a rede de esgoto do local. De acordo com a diretora do museu, Elisabete Assis, os funcionários sentem um mau cheiro desde então e eles não sabem onde está a caixa de esgoto atualmente.
Ainda de acordo com Assis, houve uma diminuição de 60% do público escolar porque o acesso ao prédio foi perdido – ou seja, os motoristas não conseguem entrar no prédio sem ter que entrar na contramão. “Além disso, tem a questão do patrimônio. Um caminhão não pode entrar aqui, o transporte de uma obra tem que ser feito na rua”, relata a diretora. Assis também tem ouvido dos funcionários que o número de assaltos cresceu vertiginosamente.
O Túnel da Abolição faz parte do pacote de obras do Corredor Leste-Oeste, que está com as obras paralisadas. Em 2015, o contrato com o consórcio Mendes Jr/Servix foi desfeito por abandono das obras e quebras de contrato. A empresa projetista Policonsult foi contratada para fazer o levantamento do que falta ser concluído.
Segundo a Secretaria de Cidades, com base no levantamento, será elaborado o Termo de Referência que norteará o novo edital de licitação. A previsão é que o processo licitatório da conclusão das obras seja aberto em outubro de 2016 e a entrega das obras ocorra um ano após a contratação da empresa. A Polícia Militar informou que a área tem patrulha do bairro, motopatrulhamento e câmera de videomonitoramento.