Concluí a leitura da monumental trilogia biográfica de Getúlio Vargas de autoria do jornalista/escritor Lira Neto.
Sobre o assunto, escrevi dois artigos: “Uma biografia de respeito” e “As duas paixões de Getúlio” que me custou um esforço enorme de concisão. Afinal, os três volumes totalizam 1374 páginas.
Outra dificuldade, quase insuperável, é definir o personagem. No entanto, o autor propõe um critério de avaliação: “Por certo o melhor caminho para compreendê-lo, em perspectiva histórica, não é o da devoção sincera ou da negação irrestrita”.
Entre adoração e repúdio, é possível perceber o homem, o mito e tentar decifrar o que é real e o que é imaginário. Convenhamos que, ainda assim, é uma tarefa praticamente inglória, principalmente, se considerarmos que a teoria política identifica no mito um tipo de “conhecimento” extra-racional em que, “O mito é o nada que é tudo” (Fernando Pessoa no poema “Ulisses”).
Com efeito, a cultura política brasileira é um campo fértil para criar e idolatrar seres demiúrgicos.
A leitura do terceiro volume dá o retoque final (1945-1954) ao retrato da política brasileira: instituições frágeis, radicalismo exacerbado, vícios históricos e sociológicos em nada republicanos e, ao mesmo tempo, sofrendo as dores do parto da modernização econômica do pós-guerra.
Neste quadro, o ditador deposto, recluso na modesta fazenda de Santos Reis, ressurge na aurora democrática da eleição presidencial de 1945, administrando o silêncio, guiado pela astúcia e, como a legislação da época permitia, foi eleito senador por três estados (São Paulo, Minas e Distrito Federal), deputado federal por seis estados e, de quebra, teve influência decisiva ao apoiar Dutra, seu algoz, que derrotou o favorito Eduardo Gomes. Bastou um manifesto alguns dias antes da eleição, pleito em que Vargas teve 1,1 milhão de votos.
Este foi o ponto de partida para o retorno ao Catete. Caminho pontilhado de lances e manobras com tintas de realismo fantástico que culminou com a chancela de 3,8 milhões de votos dos filhos do “pai dos pobres” e dos trabalhadores alforriados pela CLT, a lei trabalhista, inspirada da legislação do fascismo italiano.
A engenharia política que resultou na candidatura de Getúlio ratifica a associação entre estratégia e destino. Dado como morto; objeto de uma oposição implacável, capitaneada pela UDN; alvo de uma retórica virulenta de Lacerda e da então “banda de música” dos jovens udenistas, Getúlio protegeu-se dos holofotes, falou o necessário, licenciou-se do Senado e costurou alianças impensáveis a exemplo da união com Ademar de Barros, um precursor dos aloprados e do roubo em larga escala, escancaradamente, definido por slogan cínico que divertia o, então governador de São Paulo: “rouba, mas faz”.
Em favor de Getúlio, contava o desgoverno de Dutra, a personificação da mediocridade, temperada pelo desequilíbrio das contas públicas, inflação alta e economia estagnada.
Para abreviar a longa narrativa: a consagração eleitoral encontrou Getúlio com evidentes traços de decadência física. E mal sabia ele que a nascente do “mar de lama” brotou no círculo íntimo e infectou os ventos da esperança.
No fatídico agosto, quando o filho caçula Maneco confessou que vendeu uma fazenda ao chefe da guarda, Gregório Fortunato, por 1,3 milhões em moeda atual, um Getúlio, profundamente abalado disse a Oswaldo Aranha: “Oswaldo está configurado. Debaixo do Catete há um mar de lama”.
O atentado da Toneleros, tramado por Gregório, vitimou o Major Vaz e atingiu Getúlio. A latente ameaça militar reacendeu as inclinações golpistas. Getúlio não vacilou: “Do Catete, somente saio morto”.
A CPI sobre a Última Hora de Wainer ferveu no Congresso. A conjuntura tornou-se insuportável. A reunião ministerial da madrugada de 24 de Agosto foi uma cena típica de tragédia grega. Tancredo Neves, conciliador por vocação, propôs a resistência; a filha querida e conselheira de todas as horas, Alzira, foi ouvida em silêncio constrangedor pelos ministros, espantados com a conclamação à resistência. Feriu brios. Era a filha. A fera. Ferida.
A solução da licença, aparentemente, aceita por Getúlio, durou o tempo em que chegou o ultimato dos quartéis: deposição. Getúlio cumpriu sua última promessa e saiu da vida para entrar na história.
Esculpir o mito em carne e osso significa reconhecer em Getúlio: o déspota (esclarecido?), doutrinariamente positivista e autoritário com profundo desprezo pela democracia representativa; o outro lado da moeda está na modernização conservadora do país que empreendeu (Petrobras, Bndes, BNB, CSN, Eletrobras, CLT).
Entre o homem e o mito, prossegue o julgamento do tribunal da história.